É tarde, meus pensamentos voam para encontrar com as mais lindas aves, das mais lindas árvores, daquele país de onde eu vim e nunca conheci...
...mas no caminho, algo me atrapalha.
O que será?
Um chinelo, de madeira, apenas um dos pares, procurava o seu parceiro (o
outro par). Mas como eu sabia disso? Como sabia que ele procurava o seu par?
É que me lembrei de uma das histórias africanas que minha avó me contava: Dizia ela, que alguns escravos deixaram um dos pares de chinelo no país de origem e, o outro par, eles levavam para lhe fazer companhia; assim eles sempre se lembrariam de suas origens. Vovó falava que mesmo escravizados eles se fortaleciam com a simbologia daquele chinelo, cientes de que um dia iriam retornar e juntar os pares de chinelo e de familia. E tal qual um sankofa, aquele chinelo procurava a sua referencia, para se completar.
- Ninguém escraviza uma mente fortalecida – dizia minha avó e ao me lembrar de tudo isso, resolvi seguir aquele chinelo. Saber aonde ele ia me levar, que sankofa iria encontrar.
O chinelo entrou em uma linda casa branca, e eu fiquei a espreita na janela, do lado de fora, observando, curiosa com o que estaria acontecendo no lado de dentro. Então comecei a ouvir vozes:
- Drogas?
- Presente.
- Desestruturação escolar?
- Estou aqui.
- Subemprego?
- Presente.
- Sistema Único de Saúde precário e seletivo?
- Pronto.
- Fardados?
- Sim chefe.
- A mídia está aí?
- Presente.
- Bom, convoquei essa reunião com todos para entender o porquê que está tão difícil de concluirmos nosso objetivo.
– Eu estou fazendo meu papel, o genocídio negro está aí para todos verem. – disseram os fardados. Neste momento ouvi aplausos.
- Eu também estou fazendo minha lição de casa, pois os empregos estão cada vez mais precários e seletivos, com processo de rígido de exclusão. – falou o subemprego.
Novamente aplausos.
- Apesar do golpe que deram na educação com o objetivo de estruturá-la com todas as tentativas de cotas e quebra de estereótipos nós continuamos firme na convicção de que a hierarquia deve imperar e continuamos fazendo o jogo superficial de assuntos sobre o preconceito e validando sempre o negro como inferior, bandido ou esquecido mesmo.
- Obrigada mídia! Sem você só me sobraria a legislação como verdade e ficaria enfraquecida. - Disse a desestruturação escolar e mais aplausos consegui ouvir.
- Devo pedir desculpa chefe, fui criado para gerar a destruição de um grupo específico, mas acabei trazendo problemas para toda a sociedade, tá cada dia mais difícil selecionar quem eu atinjo, mas eu não desisto não.
- Olha Droga, você precisa melhorar suas estratégias.
- Certo, certo.
Assustada, eu simplesmente não acreditava no que estava ouvindo e, ao mesmo tempo não sabia o que fazer, como agir, o que dizer.
As vozes continuavam em falas e aplausos... de repente olhei pela fresta o que tinha dentro da casa e vi o chinelo novamente, ele encontrou seu par!
Tentei gritar, chama-lo para mim, mas a voz não saía. Incrivelmente, não sei como, este par de chinelos sentiu que eu estava lá fora e saiu da casa, vindo próximo a mim. Magicamente, cabiam direitinho nos meus pés. Neste instante veio minha voz e tive um misto de indignação e liberdade como nunca sentido. Ganhei forças (não sei de onde) e arrobei a porta daquela casa branca e comecei a gritar:
- Nunca vocês vão nos eliminar. Ninguém elimina uma mente fortalecida.
Neste mesmo instante ouvi me chamarem, era a voz da minha mãe, cada vez mais alto ela me chamava. Acordei assustada.
- Meu amor, o que houve?
- Mãe! Tive um sonho que... ...que... ...trouxe-me a realidade!
- Como assim?
- Sei lá, o racismo, não é por acaso que ele se perpetua, sabe, existe um objetivo, um propósito maior.
Não precisei explicar o sonho a ela, minha mãe entendeu na mesma hora na mensagem não escrita dos meus olhos. Ela respirou profundamente e senti que segurou o choro, logo depois disse:
- Só a gente, ninguém mais, pode mudar essa História.
- Só a gente pode escrever um futuro diferente.
Nos abraçamos longamente e me senti protegida como nunca.
Claudia Walleska é escritora, compositora e enfermeira.
Ela faz parte do Grupo de Negritudes do projeto É DIA DE ESCREVER.
Conheça mais a Claudia em seu instagram @claudia_walleska
Nossa Paixão que texto forte amor.... O que mais me chamou a atenção, são as formas de sentimentos e de crueldade que nos impulsiona a encontrar forças e continuar acreditar numa mudança efetiva, justa e igualitária para todxs nós... Lindoooooo de mais o dom da arte que tem, que transcorrer em lindas palavras cheios de potencia, amor, afeto, ancestralidade e Luz... Sorte a minha de tê-la em nossas vida, e caminharmos juntxs, semearmos e realizarmos sonhos... Kolofé, e Asé amor!!!! Bjão e Te amo. Seu Preto!!
"Ninguém elimina uma mente fortalecida." Seguimos...fortalecendo a nós e aos nossos.
Seguiremos as letras, as que brilham, as estreletras! Salve!