O parque ao lado do meu prédio era o lugar que eu frequentava, quando sentia a necessidade de me isolar para escrever. Bom, isolamento, nem sempre era possível, ainda mais quando aquele menino me avistava sentadinha no meu banco preferido. Devia ter uns nove anos, carinha de criança curiosa e uma espontaneirade fora do comum.
— Oi, tia Lia.
— Oi.— Pensei em como eu nunca soube de onde me conhecia. — Você por aqui, de novo?
— É. — Deu um sorriso irônico. — O parque é público.
Melhor ignorar aquela resposta. O garoto tinha mania de me tirar do sério.
— Eu tava pensando, tia Lia — começou, bem devagar.
Respirei fundo, mas fiquei em silêncio, na frágil esperança de uma desistência
— Você podia escrever um livro igual ao do Harry Potter.
Fingi que não tinha escutado.
— Por que você não escreve uma fantasia?
— …
— Hein, tia Lia?
— Porque não é meu estilo.
— Por que não?
— Porque prefiro escrever sobre outras coisas.
— Que coisas?
— Coisas diferentes das que você gosta.
— Coisas chatas…
— Olha, pra você a única coisa que importa é o Harry Potter. Mas pra outras pessoas, não.
— Que pessoas?
— Muitas outras.
O menino ficou quieto por alguns instantes, mas eu senti que analisava a situação. Era inteligente e perspicaz, embora fosse inconveniente demais. Paciência. Era só uma criança curiosa.
— Eu não conheço ninguém que seja seu leitor.
— Você não conhece todo mundo. — Tentei explicar, mantendo a calma.
— Conheço todo mundo por aqui…
— Olha, eu preciso muito terminar um texto. Vai brincar.
— E se eu ficar aqui quietinho?
— Não sei, não…
Acho que deve ter ficado ali uns quinze minutos. Manteve o silêncio. Eu já havia me esquecido dele, tão concentrada estava em escrever o meu conto. Cheguei a me assustar quando ouvi a sua voz.
— Acho que eu já vou indo. — murmurou, de repente.
— Tá bom. Tchau.
— Só mais uma coisa…
— Ai, não! — Suspirei. — De novo, não.
— É que eu acho que a verdade é que você não escreve histórias como a do Harry Potter porque não sabe.
— Talvez. — Engoli em seco. Era meu ponto fraco. Garoto danado. — E daí?
— Ser escritor não é nada fácil, né, tia Lia?. — Olhou direto nos meus olhos. — Parece que ninguém entende a gente, ninguém dá valor ao que a gente faz. Quer dizer, só outro escritor…
— Como sabe disso!?
Tirou do bolso lateral da bermuda algumas folhas de caderno dobradas, escritas a lápis, meio amassadas. Quem sabe, algo que estava há muito tempo esperando para ser entregue a alguém.
— É uma história.— Sorriu, meio tímido. — Uma fantasia.
— Mas… — Olhei ao redor, espantada. — A história é sua e deve ficar com você.
— Tudo bem. É só pra te ajudar, tia. Tem o começo aí. O resto tá lá em casa.
— Não. — Quis devolver as folhas. — Não é certo. Junte tudo e, um dia, publique.
— Então, você poderia ler e ver se está boa?
— Por que logo eu?
— Porque você entende…
— O quê?
— Você sabe.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o garoto se levantou e foi embora, me deixando ali, sozinha com duas histórias para resolver: a minha, de uma escritora tentando se firmar na carreira e a dele, de um Harry Potter que era, enfim, ele mesmo.
Cátia Porto
Desafio #53 de 365
Tema: Diálogos
Regras:
1 - Escreva um Diálogo em duas personagens
2 - Está proibido usar as palavras: "Ele", "Ela", "Disse", "Falou", "Respondeu"
3 - Tema Livre, mínimo 1000 Caracteres
Garoto esperto ..como muitos que há ao nosso redor. Ótimo texto!
Que beleza de texto!👏🏼👏🏼