Saudades preta e velha
Gostava de ver de fora pra dentro. O menino era meio avesso. Deve ser que
algum balanço lhe virou o vento. Ou era meio errado mesmo, por assim dizer.
De lá, do lado de fora. Do terreiro. Fitava a porta da casa, se é que rancho de
pau a pique tem esse nome como definição. Eu chamaria de lar e não de casa
apenas. Mas de lá deste ponto entre a porteira e a morada, pra de depois do
portal irregular de madeira rugosa e cobertura de sapê, o menino assistia o
ocaso do sol que se punha lá na mata ribeirinha, que ladeava a grotinha funda,
paraiso de pescar lambaris.
Entre o por do sol e o menino a rainha majestava por horas e horas a fio,
tecendo fios e recontado causos e percalços. A porta de entrada ficava em
alinhamento com a porta dos fundos, de modo que a vista atravessava a casa
e ia dar lá no sem fim do mundo. Dentro da casa e no meio do caminho existia
uma preta velha fiandeira e fumeguenta. Em um canto da boca, residia um
paieiro fininho, desde seu ascender até seu findar, sem mudar de lado. O outro
canto da boca era pra baforar a fumaça, alguns sons inaudíveis e umas
palavras agudas, mais finas que a ponta da agulha da roca de fiar. Com a luz
do sol que findava o dia por detrás, a rainha ganhava contornos abissais. Ela
era o mundo condensado aos olhos do menino. E o menino era contemplação
e encantamento por aquele par de beiços carnudos tão habilidosos no pitar e
prosear. As mãos da tecedeira eram virtuosas tanto quanto a boca na prosa e
no pito. As vezes cantarolava sem desritmar a roda que em giros vertiginosos,
produzia seus próprios sons no oficio tecelão.
Era esse trono que se colocava entre o menino e o fim do dia. A rainha avó, ali
ditava as regras e os pormenores do porvir. Menino tinha que buscar graveto
pra acender o fogo do fogão de lenha no próximo alvorecer e tomar banho pra
poder jantar. Que paisagem era ver o tempo alí, sentado em uma roda de fiar
ou as vezes cardando algodão ou lã de carneiro em um vai e vem ritmado,
manuseando os objetos de artesania, que mais pareciam duas grandes
escovas a pentear os cabelos da noite que chegava ruidosa de grilos e sapos.
O portal, a vó e a casa, entre o por do sol e eu.
Hoje estou caminho do meu poente, rememorando estar lá no quintal ainda
vendo Vó Nêga esbravejar conosco e a gente sair correndo, aproveitar um
pouco mais, antes que a noite viesse com todos os seus mistérios, febres e
incertezas. Que é de aquelas lamparinas e candeeiros que nos faziam
penumbrosos e cheios de lusco fusco, com cheiro de querosene e gosto de
colo de um preta velha ranzinza, aromando fumo e café? A benção Vó.
Arce Correia é um artista Sul matogrossense residindo em São Paulo desde 2011.
Ele participa do projeto É DIA DE ESCREVER no Grupo de Negritudes.
Conheça o Arce e suas histórias no instagram @arcecorreia
Comments