O Perdão
- Edu Mussi

- 15 de jul.
- 12 min de leitura
A vida de Anastácia foi dividida em dois períodos: o primeiro até os treze anos e o segundo a partir desta idade. Ela é oriunda de uma família muito pobre, miserável. Vivia com a mãe, Maria Raimunda, e mais três irmãs. O pai abandonou a família quando nasceu a última filha e tomou destino desconhecido. Essas cinco almas aglomeravam-se numa pequena casa de madeira, onde compartilhavam os espaços disponíveis do jeito que era possível. Logo na entrada da casa havia um pequeno ambiente onde elas chamavam de sala, depois havia outro que era o quarto, contíguo a uma outra área minúscula, adotada como cozinha, onde havia um velho fogão a gás de quatro bocas, uma geladeira modesta e uma mesa de madeira para quatro lugares do tamanho daquelas usadas em bares. Todos esses itens da cozinha foram frutos de doações. Não havia armários. Elas improvisaram umas tábuas fixadas sobre cantoneiras, que serviam de armário. Colada à cozinha tinha um cubículo onde localizava-se o banheiro e sanitário. As instalações elétricas restringiam-se a quatro bicos de luz e duas tomadas, precariamente instaladas. Não havia chuveiro elétrico. No inverno, quando a água fria era insuportável, o banho se resumia em apenas lavar algumas partes do corpo e, quando a temperatura subia um pouquinho, o suficiente que desse para suportar a água fria, elas aproveitavam para tomar banho. Não era comum encontrar comida naquela casa diariamente, mas todas elas aprenderam a lidar com a fome. De vez em quando obtinham uma pequena cesta básica fornecida por igrejas ou instituições de caridade. Quando não havia nada para comer, a mãe anunciava:
— Hoje não tem comida!
As meninas não se apertavam. Pegavam um facão e entravam nas matas contíguas ao bairro para catar cachos de banana. Nunca voltavam de mãos vazias, pois naquela cidade o que não faltava era bananeira. Tanta bananeira que os micos e passarinhos não davam conta de comer. A renda da família dependia da mãe e da filha mais velha, que eram faxineiras. Apesar desses trabalhos, o dinheiro que ganhavam não era suficiente para alimentar cinco pessoas e manter a casa. Mesmo assim elas iam vivendo, isto é, sobrevivendo.
Anastácia é a caçula das quatro filhas e até hoje ela acha, mesmo sem justificar o motivo, que foi a culpada de o pai ter deixado a família. Apesar de todas essas dificuldades da vida que levava, ela era uma criança feliz, alegre e brincalhona. Ela já apresentava traços de que seria, quando adulta, uma mulher bonita, pois era alta para sua idade e de uma magreza elegante, o rosto se tornava mais belo em decorrência da sua alegria e bom humor permanente. Às vezes, na escola, alguma colega lhe oferecia um sanduiche, alegando que não estava com vontade de comer. Ela mais que rapidamente aceitava e dizia:
— Quero porque não comi nada desde ontem. Anastácia estudava sem muito esforço, principalmente pelo desencorajamento transmitido pela mãe, que de vez em quando lhe dizia:
— Seu destino é ser faxineira, porque você é pobre, não vai chegar a lugar nenhum com esses estudos. Aliado a esse desestímulo, tinha a fome e o ambiente desconfortável onde morava. Apesar de tudo, ela conseguiu, com muito esforço aprender a ler um pouco, mas sua escrita era péssima. Quando não estava na escola, ela aproveitava todo o tempo livre para brincar pelas ruas ou frequentar a casa das colegas com quem tinha mais intimidade. Seu relacionamento com suas irmãs era muito distante.
O tempo fluiu e quando Anastácia completou quatorze anos, veio sua primeira menstruação. Como ninguém nunca lhe explicou o que significava aquilo, ela ficou apavorada. Não procurou a mãe porque ficou com medo de apanhar. Foi então à casa de sua melhor amiga pedir socorro. Berenice, mãe de sua amiga, senhora de pouca instrução, porém carregava uma sabedoria que provavelmente trouxera de outra encarnação, a recebeu com muito carinho e paciência. Explicou para a menina do que se tratava e alertou-a de que todos os meses aquilo iria acontecer da mesma forma. Deu-lhe absorvente e ensinou-a a usá-lo.
Veio o primeiro namorado. A mocinha, como sempre, escondeu a novidade da mãe, com medo da repressão, bem como, das irmãs com receio que a delatassem. O namorado, que estava com dezoito anos, detinha experiências muito além das que a adolescente possuía e a consequência desse relacionamento para a namorada foi a gravidez. O rapaz, ao tomar conhecimento disso, saiu de cena e desapareceu. Anastácia não percebeu de pronto que estava grávida, afinal ela não tinha experiência nenhuma. Apenas observou que algo não estava normal, porque sentia uma leve náusea de vez em quando e já havia passado dois meses sem o sangramento mensal acontecer. Foi pedir orientação à Berenice. Não adiantava recorrer à sua mãe porque ela não saberia lhe ajudar. A mãe de sua amiga mais uma vez demonstrou sua generosidade. Colocou Anastácia no colo, abraçou-a fazendo-lhe carinho e disse-lhe:
— Você está grávida, minha filha. – Anastácia pulou do colo de Berenice e gritou assustada:
— O que dona Berenice? Estou com um bebê na minha barriga?
— Isso mesmo, meu amor. Não se desespere e nem fique agitada, pois isso pode fazer mal para a criança.
Anastácia na sua ingenuidade, saiu muito alegre, correu para casa e anunciou para sua mãe
— Mamãe, estou esperando um bebê. A senhora será vovó. O resultado dessa notícia foi inesperado.
— O que sua moleca? Você está me dizendo que está grávida?
— Sim, mamãe. Qual o problema?
— Problema? Problema você vai ver agora. Trate de arrumar suas coisas e caia fora dessa casa. Não vou abrigar aqui nenhuma puta vadia.
As outras filhas ficaram assistindo aquela cena e não falaram nada e nem socorreram a irmã. Anastácia, sem derramar uma lágrima, em silêncio, pegou suas parcas coisas, colocou-as num saco de pano e, sem olhar para ninguém, saiu de casa sem saber que rumo tomar. A noite já havia chegado, já passavam das sete horas. Anastácia parou numa pequena praça, sentou-se num banco em busca de uma opção para passar a noite até achar uma solução. A ideia logo lhe ocorreu, foi para o quintal da escola, pois lá o espaço era grande e poderia se esconder em algum lugar. Deitou-se no pé de uma grande árvore, fez de travesseiro sua trouxa e quando já estava pegando no sono começou a chover. Mais que rapidamente levantou-se, olhou ao redor e viu que no fundo do quintal havia um pequeno depósito de ferramentas de jardinagem. A construção era feita de apenas uns esteios de madeira e cobertura com telha de fibrocimento. Não havia paredes. Correu até lá. Pegou uns pedaços de tábua, forrou o chão, escorou-se num dos esteios e dormiu abraçada na sua trouxa.
Pela manhã, com o sol alto, levantou-se apreensiva, pois já estava na hora de ir para a escola. Mas como iria assistir aula naquela situação, pensou ela. Tentou sair sorrateiramente, sem ser vista, porém sua melhor amiga, Ana Maria, a viu de longe. Correu ao seu encontro e lhe perguntou:
— O que você está fazendo aqui, toda desarrumada, com esse saco na mão?
— Ah, Aninha, minha mãe me expulsou de casa.
— Por que? O que aconteceu?
— Estou grávida, esperando um bebê.
Ana ficou sem saber o que dizer com essa notícia. A primeira reação que teve foi falar:
— Vamos pra casa pedir ajuda da mamãe.
Ao chegarem na casa de Ana, foi recebida por Berenice que já sabia parte da história. Apenas desconhecia a reação violenta da mãe de Anastácia.
— Não se aflija, minha filha, você vai ficar aqui em casa. Vamos arrumar um jeito de lhe acomodar no quarto de Aninha. Verei onde consigo um colchonete pra você.
— Aninha, abrigue Anastácia no seu quarto, faça-a tomar um banho e vão para a escola imediatamente.
O lugar onde ficou abrigada não era muito diferente daquele no qual Anastácia vivia. A principal diferença era que naquele ambiente emanava amor, carinho, solidariedade entre aquelas pessoas. Berenice tratou Anastácia como uma filha, levava-a rotineiramente ao posto de saúde para fazer o acompanhamento da gravidez e quando a menina entrou em trabalho de parto, já havia completado quinze anos de idade. Nasceu uma bebê linda, saudável e robusta. A vizinhança de Berenice contribuiu com algumas coisas necessárias à crianças recém nascidas.
Quando a criança estava com cinco dias de nascida, Anastácia foi, junto com Berenice, ao cartório registrar sua filha que recebeu o nome de Maria Salomé Santos. Ao retornar para casa, sentou-se com Berenice na cozinha e comunicou-a que não iria mais para a escola, precisaria trabalhar para sustentar a filha e contribuir com as contas da casa, afinal não era justo ela dar toda essa despesa. Berenice não pode contrapor pois não tinha argumentos e nem recursos financeiros para manter a adolescente, então apenas disse:
— Tudo bem, minha filha, seja o que Deus quiser.
Encerrado esse rápido diálogo, Anastácia saiu a procura de clientes para fazer faxina. Foi ajudada por Berenice que tinha um amplo relacionamento, bem como, respaldo para indicar a moça para o trabalho. As experiências de luta pela vida, pelas quais a moça já havia passado nesses primeiros quinze anos de existência, lhe deu muita força, garra e disposição para enfrentar esse trabalho duro. O destino lhe proporcionou muitos motivos para se tornar uma pessoa revoltada, mas ela transformou todo esse contratempo da vida em energia positiva que descarregava no serviço duro da faxina e o resultado disso foi torná-la uma faxineira que apresentava um trabalho de excelente qualidade. A fama correu rápida ao ponto de Anastácia dispensar clientes porque não havia espaço em sua agenda.
Em todos seus deslocamentos pela cidade, até quando ia para o trabalho, Anastácia levava sua filha junto. Ganhou o canguru baby bag usado, onde carregava Maria Salomé e, quando chegava em alguma casa, arrumava um cantinho para ela se acomodar e fazia seu trabalho. De vez em quando parava um pouco para a menina mamar, pois essa era a única alimentação que a criança recebia.
Depois de um ano, sempre andando com a mãe para cima e para baixo, pegando as mesmas intempéries que mãe, sol, chuva, ventos fortes, frio, calor, etc., Maria Salomé caiu doente com febre muito forte e tosse, Anastácia levou-a no posto de saúde e foi constatado que a criança estava com pneumonia gravíssima, precisava ser internada rapidamente. E assim foi feito, porém dois dias depois, Maria Salomé não resistiu e morreu. O choque foi grande, Anastácia estava passando por um sofrimento como nunca havia passado na vida e chorou muito, por alguns dias, mas logo depois ela se reergueu, deixou o abatimento de lado e partiu para a luta pela sobrevivência.
Mesmo com todo o carinho de Berenice e Ana Maria, Anastácia comunicou às duas que iria se mudar. Alugou um quartinho no mesmo bairro e lá iria se instalar, afinal o que ela ganhava já permitia levar a vida com independência, e assim o fez. Desde quando foi expulsa de casa, nunca mais havia visto a mãe e nem as irmãs. Soube apenas que todas elas largaram a igreja católica e passaram a frequentar uma nova igreja evangélica que instalaram no bairro. Anastácia não frequentava nenhuma igreja.
Depois de dois anos desde a morte de sua filha, Anastácia ficou novamente grávida. Dessa vez, mais experiente, levou a gravidez sozinha, frequentando o posto de saúde desacompanhada de alguém. Já havia adquirido a maioridade, pois já estava com pouco mais de dezoito anos. Tanto a gravidez como o parto transcorreu sem nenhum atropelo e nasceu outra menina que recebeu o nome de Maria do Socorro Santos.
Anastácia lidava com sua filha do mesmo jeito que a anterior, ou seja, levava-a para todos os lugares através de seu canguru baby bag, porém dessa vez cruzou no seu caminho um anjo que lhe ofereceu proteção e à sua filha. Ela foi fazer faxina pela primeira vez na casa de uma artista plástica muito famosa que havia se mudado a pouco tempo para a cidade. Era uma senhora de meia idade que morava sozinha. Depois da segunda faxina a artista vendo como Anastácia fazia com sua filha, carregando a criança para todas as partes por onde andava, lhe ofereceu abrigo em sua casa. Não como empregada, mas para dividir a casa com ela. O imóvel não era muito grande, tinha apenas dois quartos, sendo que um deles era utilizado como ateliê da artista, mas dispunha no fundo do quintal, uma edícula com uma pequena varanda, um quarto, cozinha e banheiro, que a moça poderia ocupar junto com sua filha. E acrescentou:
— Quando você sair para trabalhar, vou contratar uma pessoa para cuidar da criança.
— Mas dona Carolina, não posso aceitar tudo isso. Não é justo a senhora ter todo esse gasto comigo e ainda me dar abrigo para morar.
— Minha querida, disse Carolina, eu sou uma mulher que já tenho dinheiro suficiente para viver até o fim de minha vida. Não tenho ninguém no mundo para dividir tudo isso, portanto, peço-lhe que aceite de bom grado, pois estou fazendo isso com muito amor.
Anastácia, sem mais nenhum argumento, aceitou a oferta da senhora bondosa e mudou-se para lá imediatamente, até porque não havia nada para carregar, além das poucas roupas e objetos de uso pessoal. Viu que a edícula estava toda mobiliada, inclusive com utensílios domésticos tais como, panelas, pratos, talheres, Carolina providenciou um berço e alguns brinquedos para Maria do Socorro. Anastácia saia todos os dias para trabalhar e um dos dias da semana ficava em casa para fazer a faxina na casa de Carolina. Por esse trabalho, a artista plástica não conseguiu convencê-la a receber dinheiro como pagamento por este serviço.
— Isso seria demais, disse a faxineira.
Depois de alguns anos na tranquilidade, a vida dessas duas criaturas sofreu outro sacolejo. Carolina chamou Anastácia e lhe comunicou que estava se mudando definitivamente para Paris e que a casa foi colocada à venda, porém como ainda não havia aparecido nenhum comprador, ela teria tempo de buscar outro lugar para morar. Em quinze dias a artista plástica embarcou para seu novo destino e deixou a casa aos cuidados de uma imobiliária. Nesse intervalo de tempo, Anastácia já havia conseguido alugar uma pequena casa de madeira em um bairro na periferia onde foi morar com sua filha que já estava com dez anos. Nesse novo bairro, nas proximidades de sua casa, conheceu um senhor de nome Manoel Pereira, cinquenta anos, viúvo, morava sozinho e que exercia a profissão de pedreiro. Manoel tinha apenas um filho que já estava casado e residia em outra cidade.
Depois de conversarem amenidades por alguns dias, Manoel foi direto ao assunto e propôs que se juntassem. Anastácia, por sua vez, como já estava cansada de tanto lutar sozinha e de viver solitariamente, aceitou a proposta e foram morar juntos na casa de Manoel. O imóvel era relativamente confortável, comparado com as casas por onde Anastácia morou anteriormente, exceto a edícula da artista. Era uma casa com sala, dois quartos, cozinha e banheiro, construída em alvenaria, piso de ladrilho e cobertura com telhas de barro.
Maria do Socorro frequentava uma boa escola pública no mesmo bairro, era muito estudiosa e estava sempre recebendo incentivos da mãe e do padrasto. Aos quatorze anos passou a integrar o time de vôlei da escola devido sua estatura elevada e era uma excelente jogadora. Era uma moça muito bonita e logo começou o namoro com um de seus colegas da escola. Ele tinha dezesseis anos e além de estudar, trabalhava numa oficina mecânica para carros com um tio dele. Depois de um ano de namoro, Maria do Socorro engravidou. O jovem queria se casar, mas os pais dele e dela, foram contra. Acharam que ainda eram muito imaturos e poderiam continuar namorando e Anastácia continuaria cuidando da filha sem a ingerência dos pais do namorado.
A gravidez transcorreu normalmente com todos os acompanhamentos médicos no posto de saúde. No dia do parto tudo estava seguindo maravilhosamente bem, a criança nasceu com saúde e recebeu o nome de Maria Antonieta. Houve, porém, logo após o parto, um contratempo, pois Maria do Socorro sofreu hemorragia interna a qual demoraram para diagnosticar, de forma que não resistiu e veio a falecer. Mais uma desgraça na vida de Anastácia. Mais um desafio à sua resistência diante de sofrimento tão grande. A reação do pai foi inusitada, imatura e estúpida. Rejeitou a filha acusando-a de ter sido a culpada pela morte da mãe. Anastácia, acostumada a enfrentar dores insuportáveis iguais a essa, tomou a criança nos braços e disse:
— Essa criança é minha. Será minha filha. E assim o fez. Quando Maria Antonieta atingiu idade suficiente para compreender, Anastácia contou-lhe toda a história de sua origem e do que aconteceu com sua verdadeira mãe. Ao terminar o relato, com os olhos brilhando pelas lágrimas, Maria Antonieta falou para a avó:
— Apesar da senhora ser minha vó, continuarei lhe chamando de mamãe. Depois dessa declaração, Anastácia não se conteve, abraçou a filha com força e ambas choraram todas as lágrimas que estavam acumuladas pelas dores não extravasadas.
A vida daquela pequena família seguiu pelos rios do tempo até que um dia Anastácia recebe a visita de uma pessoa desconhecida que se apresentou como amiga da senhora Maria Raimunda.
— O que minha mãe tem, perguntou Anastácia.
— Ela está no leito, lá no hospital quase para morrer. Eu achei que você deveria saber.
— Foi ela que lhe mandou me avisar?
— Não. Ela nem sabe que estou aqui. Vim porque achei que você deveria saber disso.
— Um momentinho que vou trocar de roupa e já vou lá.
Logo em seguida as duas saíram caminhando juntas em silêncio. Anastácia disse apenas:
— Obrigado por me avisar.
Ao chegar no hospital, Anastácia encontrou a mãe deitada na cama, sozinha, de olhos fixos na porta como se estivesse esperando alguém chegar. Ao ver a filha entrando começou a chorar silenciosamente sem despregar os olhos de Anastácia. Esta aproximou-se da cabeceira da mãe, debruçou-se para colocar o ouvido próximo da moribunda que balbuciou:
— Me perdoa, minha filha.
— Eu lhe perdoo, mãe. Vá em paz.






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