Chegávamos quase sempre correndo, suados e eufóricos, vindos de nossas aventuras no campo. Depois de atravessar o portão e subir as escadas que nos levava à varanda larga e comprida, entrávamos direto na enorme sala, onde, bem no meio, reinava, assustadoramente soberana, a mesa de jantar. Então, parávamos, num silêncio amedrontado. Íamos, bem devagar, pé ante pé, deslizando sobre o assoalho de tábuas que rangiam com a nossa passagem, denunciando a infantil presença. A mesa dormia. Respirávamos aliviados e nos olhávamos. Salvos. De soslaio, víamos os móveis pesados de madeira escura. Confesso que nunca consegui examinar os detalhes. Havia sofás que deviam ser confortáveis, mas eram para as visitas de cerimônia. Não me lembro de ter me sentado neles uma vez sequer, quando era pequena. Uma cristaleira com copos e louças finas, mas eu nunca me aproximei, porque tinha medo que um olhar descuidado pudesse quebrá-los. Sobre a arca, enfeites que eu gostaria de examinar com as mãos, mas não tinha coragem. Havia a mesa de centro e as de canto, quietas e perfeitamente arrumadas. Uma poltrona imensa, sempre vazia. E a televisão, sempre desligada.
E ela, a mesa. Uma toalha branca com o vaso no meio. As cadeiras, alinhadas. Um conjunto imenso, virado para a porta dupla na entrada da casa de fazenda. Nós, crianças, chegávamos esquecidas do perigo, inocentes e saltitantes e, então, nos deparávamos com ela. A mesa era a dona da sala. Nunca havíamos nos sentado ali para comer. Nunca vimos alguém usá-la para esse fim. Mas baixávamos os olhos ao avistá-la, num misto de respeito e temor.
— Shhhh! — Alguma criança mais atenta avisava ao grupo.
— Comportem-se, — ela parecia dizer, — lembrem-se da minha utilidade…
Passávamos por ela, acanhados. Apavorados, é melhor dizer. E íamos direto para a outra sala, ligada à cozinha, lugar de gente viva. De comida boa e janelas abertas para um pomar cheio de árvores. De lá, se ouvia a cachoeira e os animais. Muitos pássaros. As galinhas no poleiro. Os cachorros. O gado. Gente andando pra lá e pra cá. O rádio ligado. A mesa comprida simples com bancos de madeira nos recebia para festejos. Cômodos com móveis e pessoas que não podiam nos assustar, ainda que os donos da casa, idosos, exigissem muito respeito, acostumados com as crianças de outros tempos. Era a vida.
A mesa ameaçadora tinha ficado para trás, no lugar de mistério e cerimônia por onde se entrava. Uma espécie de purgatório para se chegar ao céu.
Criança esquece fácil, diziam. Mas nem sempre esquece de verdade, hoje eu sei. Nós, as crianças da época, jamais nos esquecemos. No máximo, adormecemos a lembrança. Mais de uma vez, vimos a enorme e imponente mesa entre velas a iluminar um caixão. Dentro, alguém morto, velado na sala de casa, como era o costume da época. Ir ao velório com os filhos pequenos era comum. Não explicar para eles sobre a vida e a morte, também.
Os caixões sempre iam embora com seus defuntos, mas ficava a mesa. Marcada na nossa memória como palco onde a morte se fazia verdade, exibindo algo que nós não entendíamos direito e, talvez por isso, o medo.
Quando, bem mais tarde, voltei lá, já adulta, fiquei surpresa com o tamanho da mesa. “Cadê o resto?’, pensei, achando-a pequena demais para algo que serviu tanta dor e tristeza, insignificante demais para ter alimentado, por tanto tempo, o imaginário infantil.
Senti-me de volta ao passado, aos meus medos infantis😉