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Mistura da Miséria com o Sonho

Maria Luiza, moça de 30 anos que vive apenas com seu filho de 15 anos. O pai do garoto foi morto por atropelamento causado por um motorista, bêbado e rico. A mãe e o filho moram num barraco localizado numa favela que não tem violência, mas tem muita miséria. O esgoto escorre a céu aberto. Água é coisa rara, as vezes tem, as vezes não. A energia elétrica é precária. As ruas, se é que se pode chamar assim, é intransitável. Quando há necessidade de levar alguém numa ambulância, o doente é deslocado numa padiola de sua casa até ao carro de socorro.


Maria Luiza é faxineira de profissão e trabalha numa grande empresa. Todo dia levanta às quatro horas da madrugada para preparar o café e a comida para montar sua marmita e a do filho que trabalha como office boy num escritório de contabilidade.


Lú, como é chamada na intimidade, não é uma moça bonita. Não tem cintura, seu busto é quase plano, por falta de seios. Os cabelos desgrenhados que ela amarra com uma fita em formato de rabo de cavalo. Quase não tem cílios e sobrancelhas e seus dentes são voltados para a frente e desalinhados.


Apesar de tudo, Maria Luiza carrega uma auréola de luz que a torna uma moça cheia de simpatia e todos que se relacionam com ela, adoram sua companhia. Nunca se ouviu uma reclamação da vida, dita por Maria Luiza. No intervalo do almoço ela pegava sua marmita e ia comer distante, longe de todos. Quando terminava, colocava sua marmita ao lado e ficava olhando para o infinito, pensativa. Sua postura era de quem estava meditando. Para chegar ao trabalho ela pega dois ônibus de ida e para voltar outros dois ônibus. Quando desce no ponto do segundo ônibus, ainda caminha um quilômetro até chegar ao trabalho. Ao voltar para casa, caminha os mil metros para chegar ao ponto do primeiro ônibus. Ela faz isso todos os dias da semana, inclusive aos sábados.


Certo dia, ao voltar para casa, resolveu mudar o trajeto da empresa até ao ponto do ônibus. Na nova rota, passou sob um portal que parecia a entrada de um castelo. Ela não conhecia aquele lugar e nunca soube da existência daquela construção. Quando passou debaixo do pórtico, houve uma explosão de luz sobre ela que a deixou desnorteada, mas quando se recompôs, viu que a paisagem ao seu entorno havia se transformado. Percebeu que tudo nela havia mudado. Olhou para si e viu que sua roupa era completamente diferente de tudo que já havia vestido até então. Um vestido longo, cheio de brilhos. Sapatos altos que esforço para se equilibrar. Brincos estilosos , colar de pedras que realçavam seu decote. O jeito de sua pele mudou, tornou-se bela, negra e sedosa. Os cabelos eram negros e encaracolados. Estavam soltos, mas arrumados de uma forma que harmonizavam com seu rosto. A maquiagem era simples. As pálpebras levemente pintadas que realçavam seu olhos grandes e castanhos. A boca de lábios carnudos que se destacavam pelo batom carmim.  


Logo à sua frente havia uma limusine com a porta aberta um motorista vestido à caráter, aguardando sua entrada no carro. Ao se acomodar no banco, encontrou uma moça tão linda como ela, bronzeada, cabelos negros e ondulados, que a recebeu com um largo sorriso e a cumprimentou, revelando que se conheçam.


– Oi Lu, você está linda.

– Oi Cris,  estava com saudades – e se beijaram levemente para não estragar a maquiagem. Cristiane ordenou ao motorista para seguir e percorreram cerca de 10 minutos pelas ruas da cidade até chegarem a um lugar suntuoso de construção moderna e vasta iluminação ofuscante na fachada. Era um hotel de luxo. Acessaram a entrada de mãos dadas, através de uma passarela coberta por tapete vermelho. Contíguo ao esplêndido saguão havia um enorme salão com mesas arrumadas ao redor, ocupadas por pessoas vestidas com elegância. A pista de dança no centro, já estava cheia de casais bailando ao som de uma orquestra localizada no palco ao fundo do salão.


As duas foram direto para a pista de dança. Entrelaçaram-se e dançaram por um longo tempo, trocando olhares, sorrisos e carícias. Extasiadas pelo momento, não sentiram cansaço, e quando resolveram parar de dançar, se dirigiram direto para um corredor onde ao fundo pegaram o elevador que as levou até o décimo terceiro andar onde estava o apartamento reservado para elas.


Ao ingressarem no apartamento, Maria Luiza se deslumbrou com aquele lugar pomposo. À sua esquerda uma cama enorme e bela. À frente um janelão envidraçado com lindas cortinas. À frente da cama um hall com uma mesa decorada com um vaso cheio de flores coloridas, um balde com champanhe e uma vasilha estilosa com morangos suculentos. Cristiane serviu o champanhe, comeram alguns morangos e depois dirigiram-se para a cama. Ainda de pé, despiram-se devagar como se fosse um ritual onde os movimentos eram lentos, eróticos e cheios de carinhos. Amaram-se com tanta intensidade que Maria Luiza jamais havia experimentado prazeres iguais àqueles.


Quando o relógio apontou meia noite, Cristiane, disse que precisavam ir, pois o tempo delas estava terminando. Maria Luiza resistiu em atender sua namorada e perguntou por que não ficariam ali mais tempo. Cristiane respondeu que à uma hora da madrugada, todo aquele encanto desapareceria e Maria Luiza voltaria ao que era. Logo levantou-se e vestiu-se.


Conformada, Maria Luiza fez o mesmo, recompôs-se e saiu do apartamento junto com sua amada que já estava pronta. As duas caminharam pelo saguão de braços dados e a limusine já estava à espera delas. No trajeto, Cristiane perguntou se Maria Luiza gostaria de repetir aquele encontro. Sem titubear, ela respondeu que sim e Cristiane recomendou para que ela jamais contasse a alguém sobre aquele encontro. Em hipótese alguma, ela ressaltou, porque se fizesse aquilo, o encanto acabaria e não se veriam mais. Ela achou estranho aquela recomendação, mas concordou.  


A limusine parou em frente à entrada da favela, beijaram-se e Cristiane disse que estaria esperando por ela no mesmo horário e lugar. Ao pisar no chão, Maria Luiza constatou que estava vestida com sua velha calça jeans, camiseta surrada e sandália de borracha. Ao virar-se viu que não havia nada, exceto a avenida com carros transitando em alta velocidade. Deu um leve sorriso e caminhou até sua casa.

Ao entrar, seu filho estava de pé, nervoso pelo fato de sua mãe ainda não ter chegado. Nunca havia acontecido aquilo. Exaltado ele perguntou onde ela estava até aquela hora. Ela, com tranquilidade e um largo sorriso lhe respondeu que estava se divertindo e que era um direito dela. Encerrou a conversa dizendo para ele não se preocupar. Beijou sua testa e disse para irem dormir, porque já estava quase na hora de se levantar.


Naquele resto de madrugada, Maria Luiza dormiu como se estivesse no céu e acordou assustada com o barulho do despertador. Já eram quatro horas da madrugada. Levantou-se feliz, cantarolando. Fez sua higiene matinal e foi para a cozinha passar o café e preparar as marmitas.


Nunca ela tinha ido para o trabalho tão feliz como naquele dia que nem percebeu as viagens horríveis no ônibus. Entrou na empresa, cumprimentava as pessoas que cruzavam com ela, vestiu seu uniforme e pegou seus instrumentos de trabalho. Sua colega se surpreendeu com a alegria indisfarçável de Maria Luiza e comentou:


– Mão sei como você ainda sorri, limpando a merda desses banheiros fedorentos.


Maria Luiza não disse nada, apenas sorriu deixando sua amiga mais zangada ainda. No término do expediente, Maria Luza trocou seu uniforme pela sua velha calça jeans e camiseta desbotada, calçou sua sandália de borracha e seguiu rápido para o local de encontro com a Cristiane. De longe vislumbrou o portal e apressou os passos. Ao passar sob o pórtico, ocorreu a transformação. Mais uma vez estava bela como no dia anterior e a limusine no mesmo lugar com a Cristiane a esperando com as mãos estendidas para tocá-la e beijá-la. Dessa vez não se preocuparam com a maquiagem. Seguiram para o mesmo lugar e repetiram tudo que fizeram no dia anterior.


A semana inteira foi desse jeito. Mas no sábado Maria Luiza trabalhou até ao meio dia e Cristiane disse que a esperaria uma hora da tarde. E assim aconteceu. Ao passar sob o portal, aconteceu a mudança, mas dessa vez seu traje era diferente: uma calça e blusa de malha, tênis casual e um lenço de seda enrolado no pescoço. Cristiane estava vestida de forma semelhante. As duas seguiram para uma floresta que ficava nas imediações da cidade. A limusine deixou-as à beira de uma pequena estrada e, de mãos dadas, entraram na floresta e logo à frente, encontraram uma clareira gramada, com uma manta felpuda colocada no chão e sobre ela um cesto de vime com petiscos, uma garrafa de vinho e taças. Sentaram-se sobre a manta, Cristiane pegou um abridor estiloso dourado, abriu a garrafa de vinho e serviu a bebida. Depois de saborear o vinho e comer alguns petiscos, amaram-se ao relento com a brisa leve batendo em seus corpos nus. E lá ficaram até quase a hora do sol ceder lugar para a noite. Levantaram-se, vestiram-se e caminharam de mãos dadas até o ponto ao onde elas desembarcaram e a limusine já estava lá esperando-as.


Sem que Cristiane percebesse, Maria Luiza pegou o abridor dourado e colocou no bolso de sua calça, pois queria levá-lo como recordação. Seguiram até à entrada da favela e marcaram outro encontro para segunda-feira. Mais uma vez, Maria Luiza viu-se vestida com sua velha roupa ao desembarcar da limusine. Mas ela já estava acostumada com aquilo.


Ao entrar em casa, procurou o abridor que havia surrupiado e se surpreendeu com um sapo que pulou de dentro do seu bolso. Ela deu um grito assustador e seu filho logo correu para socorrê-la sem entender nada. Em prantos, apontava para o sapo no chão que estava tão assustado quanto ela.


– Mãe por que você está assim, é apenas um sapo. – Abriu a porta da rua e tocou o animal para fora com uma vassoura.


Maria Luiza não parava de chorar e seu filho a acomodou no sofá e sentou-se ao lado dela esperando que se acalmasse. Quando finalmente, ela conseguiu suspirar e enxugar as lágrimas do rosto, virou-se para ele e disse que não aguentava mais guardar um segredo e contou-lhe com todos os detalhes o que havia acontecido com ela durante a semana. Ele não disse nada, apenas a ouviu com paciência. Mas quando ela terminou cobrou dele:


– Você não me diz nada?

– Mãe, sonhar e viver são duas coisas que se confundem e se completam.


Depois de ouvir aquilo, Maria Luiza disse que iria se deitar porque estava cansada. Trocou de roupa, acomodou-se em sua cama, chorou por um longo tempo, depois dormiu e foi acordar no dia seguinte quando o sol já estava alto. Ao chegar na cozinha o café já estava sobre a mesa com pão e margarina. Ela tomou alguns goles de café e não comeu nada, disse que estava sem fome.


Como todo domingo, foi lavar a roupa suja da semana, com a mão porque não tinham máquina para lavar. Estendeu-a e depois foi fazer o almoço com a ajuda do filho. Nada de extraordinário: feijão, arroz, carne moída e macarrão. Depois da refeição pediu ao filho para arrumar tudo e retirar a roupa seca, pois iria se deitar e não queria fazer mais nada naquele dia.


Na segunda-feira acordou feliz e sorridente. Iria se encontrar com Cristiane e não via a hora daquilo acontecer. Trabalhou com tanto afinco que nem percebeu a hora passar. Terminado o expediente, trocou de roupa e correu em direção ao portal. Mas quando chegou ao local, não havia portal, limusine, nada. A paisagem era de casas velhas, com um cachorro deitado na calçada e os carros passando em alta velocidade pela avenida. Sentou-se no batente de uma porta, debruçou-se sobre os joelhos e chorou copiosamente. Quando se acalmou, lembrou-se do que Cristiane havia lhe recomendado.


Voltou para casa e seu filho estranhou por ela não ter ido se divertir naquele dia. Ela o abraçou e chorou nos seus ombros por um longo tempo. Mais calma, se afastou dele lhe pediu perdão por aquele comportamento. Ele deu um leve sorriso e lhe disse:


– Mãe, ao colocarmos um ponto na felicidade, logo iniciamos o parágrafo da tristeza..


Maria Luiza, sem alternativa, foi para seu quarto, deitou-se na cama para chorar.


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