— E então, de repente, eu estava de volta à atividade.
Fiquei fora por algum tempo. Foi a consequência de ter me apaixonado por ele, meu colega de trabalho. Sim, trabalho. Não formal ou convencional. Não muito lícito, é verdade. Mas, ainda assim, um trabalho. Porque eu não encontraria uma outra palavra para definir o esforço que é preciso fazer com pesquisa, planejamento, criação de um personagem convincente, período de atuação e tal, até a conclusão do plano. Ou seja, o momento de depenar o pato. Ou a pata. E, depois, ainda havia todo o risco até a conclusão do negócio. Daí, é aproveitar os frutos desse trabalho.
— Ah, leitor, quem não merece umas férias, após tanto esforço?
Eu tinha um parceiro de trabalho para esses, digamos, ‘favores’, que eu e ele fazíamos a pessoas idosas, bem-sucedidas, com muita grana, mas carentes ou doidas para viver um pouco de aventura, coisa que sua idade e condição social não lhe permitia. Homens e mulheres. Ricos pensam que o dinheiro compra tudo!
Eu e o meu parceiro éramos jovens, bonitos, educados, inteligentes e charmosos. Sem falsa modéstia. Aí, bolávamos o plano e escolhíamos a vítima, geralmente num aplicativo de relacionamentos. Era mole! Depois, cada um ia para o seu canto e só voltávamos a nos falar quando surgia outro servicinho.
A nossa parceria ia muito bem e foi razoavelmente lucrativa por um bom tempo. Não tínhamos problemas com a polícia, porque as vítimas preferiam não correr o risco de ter os nomes envolvidos em escândalos. Era muito compreensível. Bastava a gente insinuar a chantagem e eles abriam a carteira. Com raiva, lógico, mas abriam. Cumpríamos o combinado, sumindo no mundo. Garanto que eles nunca ficaram menos ricos. E, além do mais, essa gente infiel bem que merecia uma liçãozinha, pra pensar duas vezes antes de pular a cerca de novo.
Mas, um dia, de repente, aconteceu o inesperado. Uma armadilha do destino.
Eu e o meu parceiro nos apaixonamos. Um pelo outro, sabe? Nós dois…
É claro que rolou ciúme e possessividade. Não dava nem pra imaginar um traindo o outro, nem por dinheiro. Ficamos caretíssimos! Montamos casa e fizemos planos de arranjar emprego, ter filhos, essas coisas que gente normal costuma fazer. Quase nos casamos. Isso dá uma ideia do quanto a coisa ficou séria!
Seis meses. Nossa aventura durou seis meses! E aí o dinheiro acabou. E, com ele, todos os nossos sonhos de sermos um casal comum. Então, adeus, amor. Pior que isso: viramos inimigos mortais. Passamos a sentir raiva um do outro.
Esse era o meu primeiro trabalho solo. Fiquei meio insegura, mas passou.
Estávamos num cruzeiro, eu e o meu coroa. Pena que não podia curtir a viagem porque, embora ele não admitisse, tinha medo de ser visto comigo. Mal havíamos deixado o porto do Rio e já avisou que ficaríamos escondidinhos o tempo todo. Só nós dois! Pensou que eu era boba! Sabia que era casado. Tudo bem.
De repente, uma surpresa:
— Serena!? — a voz grave e rouca me fez estremecer. — É você?
— Vini…— consegui apenas murmurar
Eu e o meu antigo parceiro, ambos devidamente acompanhados, nos encontramos no corredor, à caminho das nossas cabines.
— Você não me disse que estava fora do esquema!? — Vini gritou, não conseguindo conter o ciúme. — Arranjou outro parceiro de trabalho? Quem é?
— E você com uma mulher mais jovem!? — eu respondi. — Quebrou a regra!
E aí, do nada, o meu acompanhante e a dele também começaram a discutir. Descobrimos que eram marido e mulher e ficaram, ambos, indignados com a traição um do outro. Uma tremenda coincidência!
Então, tudo ficou muito claro para o casal-vítima. Eles nos acusaram de querer aplicar um golpe para extorquir dinheiro e foram depressa avisar ao capitão do navio. Talvez fôssemos presos, eu e o Vini, assim que o cruzeiro atracasse. Passamos o restante da viagem escondidos dentro de uma cabine.
— Eu e o Vini, juntinhos, na mesma cabine, leitor. Pode imaginar?
Bom, é claro que brigamos, mas fizemos as pazes e prometemos nunca mais nos deixar. Só que a prisão não estava em nossos planos. Então, solicitamos a presença do capitão, para fazermos um acordo. Mas, que tipo de acordo poderíamos propor?
— Nenhum… — Vini disse, desanimado. — Estamos ferrados.
O navio havia entrado no meio de uma tempestade terrível e jogava muito. Chovia e trovejava sem parar. Algo assustador. De repente, tive uma ideia.
— Vini, você ainda carrega aquela seringuinha camuflada na cigarreira, para o caso de precisar dopar a vítima?
— Sim, por quê?
Quando o capitão e o ajudante chegaram, eu e o Vini tentamos explicar que foi tudo uma infeliz coincidência e que não era nada daquilo que o casal pensou e tal. Éramos inocentes vítimas do destino (e isso era verdade, naquele caso!). Não adiantou, o homem estava irredutível. Então, fingi que ia pegar provas da nossa idoneidade no armário, mas com a instabilidade no mar, acabei ‘tropeçando’ e caindo por cima do capitão O Vini, já preparado, veio ajudar, aplicando a injeção na barriga dele, que eu escondia com o meu corpo. Na hora, ele não deve ter sentido nada. O ajudante do capitão também não desconfiou. Nosso álibi. E assim que me colocaram sobre a cama, eu reclamei de muita dor no pé. Comecei a chorar.
— Chamem o médico! — disse o capitão, ainda bem e lúcido.
Daí pra frente, tudo saiu melhor do que o esperado. O médico e a enfermeira vieram à cabine e, enquanto me examinavam, o capitão começou a passar mal, desmaiando. Suspeitaram logo de um mal súbito e a situação ficou tensa.
— Você, leitor, pode até perguntar se isso não era enredo de outro desafio. E era. Mas ela está muito atrasada. Então, vamos no embalo…
Foi um corre-corre para socorrer o capitão. E a mim, ao mesmo tempo. Fomos levados à enfermaria, com muito sacrifício, pois tudo caía e havia outros passageiros feridos e muita gente enjoando, inclusive o casal-vítima com o qual havíamos nos envolvido. Com certeza, eles já nem se lembravam de nós.
A tempestade piorava e as ondas gigantescas me deixavam aterrorizada. Houve um momento em que pensamos que o navio fosse mesmo virar. Eu cheguei a sentir o cheiro da morte, trazido pelos fortes ventos que assolavam o navio. O desespero foi total. O intenso e inesperado evento climático nos pegou no início da viagem e quase nos levou ao fundo do mar. Começamos a rezar.
— Se eu conseguir sair dessa, viva, nunca mais aplico golpes. — prometi.
— E eu vou voltar a trabalhar como vendedor de carros — Vini garantiu.
Levou ainda algum tempo até que a tempestade passasse. As avarias no barco e a quantidade de passageiros machucados e apavorados fizeram com que nós voltássemos para o porto do Rio, de onde havíamos saído.
Com a confusão, não foram feitos os exames de sangue que comprovariam que o capitão havia sido dopado. Eu e o Vini nos misturamos aos passageiros e procuramos passar despercebidos pelo saguão, para não sermos reconhecidos.
— É, leitor, parece que o destino estava a nosso favor. Você não acha!?
Olhei para o lado, percebi que havia um senhor, mancando e usando uma bengala, enquanto carregava uma valise Louis Vuitton na outra mão.
— Que susto, não é verdade? — eu disse, diminuindo o passo e me espremendo contra ele, fingindo ser empurrada pelo povo que passava por nós.
— Sim — ele respondeu. — minha esposa ainda está na enfermaria.
— Ah, coitada. — Se quiser posso lhe fazer companhia — Sorri novamente.
— Se não for se sentir entediada com um velho lento e caduco como eu…
— De forma alguma. Será um prazer…
Ele me olhou e pareceu ter gostado da ideia. Dei-lhe o braço e continuamos a andar. Do outro lado, observei que Vini também conversava com uma senhora bem vestida, jogando todo o seu charme, enquanto a ajudava a carregar as malas.
Cátia Porto
Desafio #61 - Vilões em Guerra
Desafio #64 - Tá chovendo e relampegando
Os dois temas se encaixaram bem, ótimo!
Matou dois passarinhos com um tiro só… boa ideia! Ótimo texto(s)🤣🤣🤣