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Conto: Roda Gigante, por Maithe Prompeo

O pai da Ana Carla matou a mãe dela. O fato teve espaço no jornal local, aquele das dezoito e trinta da tarde (ou da noite, eu nunca sei). No jornal em papel não teve uma linha falando sobre isso, apenas os classificados de imóveis e empregos e umas notícias sobre as falácias da política. Na época em que aconteceu nem existia a palavra feminicídio, e se existia estava restrita aos núcleos acadêmicos.


A Ana estava presente, assistiu ao assassinato da mãe. Tinha seis anos, não entendeu nada, mas se lembra de suplicar ao pai para que parasse. Chorava desesperadamente. Sentiu uma dor com gosto amargo e cheiro fétido. Pensou em matar o pai. Sim, tinha seis anos e pensou em pegar uma faca, daquelas bem grandonas, e dilacerar aquele corpo malvado. A mãe morreu, caiu dura no chão e foi enterrada com o caixão lacrado. Ana foi obrigada a permanecer ao lado do pai durante todo o ritual, com os olhos tremendo de raiva. A avó, que ficou com a guarda dela, naturalizou a atitude do pai, ainda que fosse mãe da vítima. Disse que homem era um bicho complicado e que a violência acontecia quando a pessoa não sabia mais o que fazer, ou quando a vítima provocava aquele ser truculento e sem controle das próprias atitudes.


Ela continuou morando com a avó, dona Cissa, até os dezessete anos, quando passou a morar em uma kitnet com o companheiro. Desde os oito pensava em como sair daquela casa cheia de santos e hipocrisia. Conheceu o Saulo por meio de uma amiga da escola, que nem era tão amiga assim. Se apaixonou, deixou todo seu desamparo gritar alto e se jogou em uma relação que tinha tudo para dar errado. O Saulo era do tipo machista, que achava que mulher tem que dirigir a pia de louças e procriar feito um coelho. Isso era mulher boa para ele. E a Ana foi aceitando, foi se moldando, foi se encaixando, até que virou a boneca que ele desejava: a maga da subserviência. Para ela estava tudo bem, pelo menos superficialmente, até que ela chegou um dia e encontrou a “amiga” em cima do namorado, sem roupa, gritando vulgaridades. Chorou imediatamente, aquele choro dos seis anos. Reviveu a dor de ver sua mãe ser morta.


Perdoou o erro do companheiro, o qual lhe encheu de flores e lhe deu um anel muito bonito. Se convenceu de que as pessoas são falhas e acreditou em sua própria mentira, ainda que tenha desenvolvido uma úlcera e sentisse sempre dores abdominais. Devia ser seu corpo pedindo socorro, pedindo para ela se cuidar, uma única vez. Acabou que o Saulo terminou com ela, porque engravidou a amiga, e para ele homem de verdade tem que assumir filho. Enzo. O nome da criança.


A Ana precisou voltar para a casa da avó, já uma senhora de idade muito avançada a esta altura. Cuidou da avó como se não guardasse rancor das atitudes desta. Até que um dia a mulher teve um acidente vascular cerebral e morreu no hospital municipal. Mais um estresse para a Ana de duas décadas de vida. Vendeu a casa da avó e com o dinheiro comprou um canto para si. Foi morar sozinha e arrumou um emprego num lugar que sugava todas as suas horas. Realizava atividades que achava sem sentido, mas até então qual era o sentido de sua existência?

Recusou tentativas de amizade de muitas pessoas e outros tantos flertes que surgiram. Se tornou uma ranzinza, como diziam os colegas de trabalho, sempre ocupados com as últimas fofocas. A Ana chegava, colocava o uniforme e trabalhava. Ao fim das horas diárias, comia um lanche com batatas fritas e então voltava para sua casa. Uma vida vazia.


Um dia chegou no trabalho e ouviu que era uma doida. Que precisava de Psiquiatra. Nunca tinha ouvido falar desse negócio, mas abriu rapidamente a aba de pesquisa do celular e digitou meio rápido “psiquiatra o que é”. Descobriu então que existia uma pessoa, chamada psicóloga, que estudava para ouvir pessoas e suas histórias tenebrosas. Franziu o cenho, achando aquilo bem esquisito. Continuou ouvindo a conversa e uma das pessoas falou que a empresa contava com uma psicóloga, era só chegar e falar que queria conversar.


Ana assentiu mais ou menos. Seguiu a vida, pensando nos psiquiatras e psicólogos mais algum tempo, deixando depois esta ideia guardada em algum canto de sua mente. A ideia voltaria posteriormente e ela acabaria batendo na porta da Sueli, a Psicóloga da firma, mas naquele momento não sabia disso.


Os dias seguiram, daquele jeito mecânico. Acordar cedo, tomar banho, ir para o trabalho, comer lanche com batatas-fritas, voltar para casa. Transporte público lotado, de manhã e à noite. Violências frequentes no ônibus, com caras passando a mão em seu corpo e sorrindo de maneira nojenta, caras comentando sobre seu corpo e gritando impropérios para ela. Nestes momentos a Ana desejava mata-los, do mesmo jeito que desejou quando seu pai matou sua mãe.


Continuou, apesar da dor. Para ela a vida era só dor, não conhecia outros sentimentos. A única vez que chegou perto da felicidade foi com o Saulo, o companheiro desgraçado. Efêmera foi esta dita felicidade, voltando depois a sentir aquilo que já conhecia bem: o nada.

Completou mais um ano de vida, pensando que isso não tinha significado algum. Não comprou bolo, tampouco recebeu cumprimentos das pessoas. Lembrou da data somente no trabalho, quando precisou preencher um papel com o dia. Neste dia chorou, sem entender direito o porquê. Lembrou da palavra psicólogo e chegou a ter um fio de esperança. Será que daria para ter uma vida diferente? Melhor talvez? Logo deixou estes pensamentos de lado e retornou ao seu estado natural, de melancolia.


Um dia, durante a semana, uma dessas entre o outono e o inverno, encontrou um caderno em branco no trabalho, largado num canto. Fazia anos que não via folhas. Na época da escola tentava aprender, mas tudo parecia difícil. Aquelas álgebras, as regras gramaticais. Ir para a escola só lhe dava o sentimento de fracasso, de não ser boa em nada, nunca. Quando falou em desistir, levou uma surra da avó e permaneceu, ganhando o canudo do Ensino Médio. Levou o caderno perdido para casa.


Com aquele caderno-nostalgia pensou em escrever seus sentimentos. Começou a fazer todos os dias uma espécie de diário, narrando suas vivências. Contava piadas sarcásticas para si mesma, rindo sozinha. Passou um dia no mercado perto de sua casa e comprou macarrão, molho pronto em sachê e uma garrafa de vinho. Estranhou sua disposição para cozinhar e beber algo diferente de água. Aceitou.

Fez um macarrão básico, do tipo que não tem erro e tomou vinho no copo que outrora fora para requeijão. Sentiu alguma coisa que não estava no seu catálogo emocional. Não era angústia, não era dor, mas não sabia nomear. Até chegou a buscar na internet o termo “sentimentos nomes”, mas encontrou apenas coisas como alegria ou tristeza.


Talvez fosse orgulho a palavra que estava buscando. Pela primeira vez fez algo por si. Finalmente conseguiu sentir algo além da culpa pela morte da mãe. A vida inteira carregou a carga de se sentir responsável pelo assassinato. E foi convencida exatamente desta versão. Ela havia sido a criança problema que fez o pai perder o controle. Não. Não era. O único culpado foi seu pai, um homem desequilibrado.


Tomou a garrafa toda de vinho, foi para a sacada do apartamento, que nunca havia sido frequentada, e gritou bem alto:

  • MÃE, EU SEMPRE VOU TE AMAR.

Recuperou o fôlego e gritou com uma voz que veio do seu eu mais profundo, abaixo de todas as camadas:

  • ME DESCULPA.

Continuou baixinho, abraçando o próprio corpo:

  • Me desculpa por não ter conseguido ligar para alguém. Me desculpa por não ter empurrado ele. Me desculpa mãezinha. Me perdoe.

Chorou o resto da noite, sentindo que era novamente a Ana Carla de seis anos. A criança que não era problema, mas sim desamparada, desassistida. Se abraçou como gostaria que tivessem feito por ela em algum momento da vida. Se permitiu sentir a enxurrada que vinha. Deixou. Falou as palavras necessárias.


No outro dia trabalhou com uma dor de cabeça típica das primeiras vezes no álcool. Tentou fingir que nada havia acontecido em sua vida na noite anterior, seguindo o automatismo de todos os dias. Precisou subir para o segundo andar da empresa, a fim de entregar um papel. Quando subiu deu de cara com uma porta em que se lia: Psicóloga, e logo abaixo: Sueli Torres. Colocou o ouvido na porta, de modo que percebeu algumas teclas. Imaginou que alguém estivesse ali, batendo na porta levemente, com os nós dos dedos:











dele.

  • Entra. Ouviu do outro lado.

Entrou meio desconfiada, meio envergonhada:

  • Oi. Sueli né?

  • Isso mesmo, você é?

  • Ana. Carla. Fico no primeiro andar.

  • Pois não Ana, em que posso ajudar?

  • Ahn, eu...tô procurando o Marcos, da Qualidade. Achei que fosse aqui a sala

    • Não, o Marcos fica ali no fim do corredor.

    • Certo, perfeito, ótimo! Muito obrigada.

    • Como você disse que é seu nome mesmo?

    • Ana Carla. Primeiro andar.

Ana saiu da sala e levou o papel para o Marcos, da Qualidade, que ficava no fim do corredor. Negou com a cabeça, como quem faz um gesto de “que merda eu fiz?!”. A tal psicóloga era uma pessoa comum, parecia até simpática. Ela sabia disso. Retornou à sala da Sueli, bateu novamente, desta vez não esperando a resposta. Abriu a porta:

  • Na verdade eu queria falar com você.

  • Claro Ana, sente-se.

E ela falou. Narrou as dores de uma vida inteira nos longos minutos que ficou em frente à Sueli. Saiu leve e voltou mais uma vez, nesta sendo encaminhada para uma psicóloga clínica. Iniciou a terapia, uma vez por semana, por um preço social, a fim de que pudesse realizar o tratamento.


Após alguns meses, lembrou de dois lugares que amava mais que tudo: a roda gigante da cidade e o penhasco que conseguia ver do alto do brinquedo do parque. Saiu do trabalho naquela sexta-feira e foi, determinada, para a fila do parque. Comprou o ingresso e aguardou sua vez. Entrou numa das cabines vazias, era como gostava de ir ao brinquedo, e olhou para aquela cidade que havia sido tão ruim, por tanto tempo. Pensou em toda a dor, essa que não sabia nomear, só sentir. Avistou o penhasco ao longe e decidiu que para lá iria após a volta na roda gigante. No ponto mais alto do brinquedo sorriu, de uma maneira que nunca tinha feito. Sorriu de dentro para fora, mostrando muito mais que os dentes levemente tortos. Mostrou a si mesma que era possível ser feliz, era possível consertar os erros de uma vida, era possível mexer nas feridas de maneira adequada, segurando mãos amigas.


Desceu do brinquedo sentindo os olhos molhados, mas sabia que dessa vez não era aquele choro da dor e da angústia. Era uma outra coisa, um choro de compreensão. Compreendeu, ali, que teria que ser ela por ela sempre. E que se outras pessoas aparecessem no caminho, seria para um apoio, não para o trabalho completo. Quem morava nela mesma vinte e quatro por sete era ela.


Se direcionou ao penhasco que tantas vezes frequentou considerando o pulo final, olhou para baixo e dessa vez sentou-se na beiradinha. Gostamos disso que é perigoso, mas não mata, a menos que a gente queira. Essa adrenalina que os parques simulam vem da sensação de controle-descontrole, numa balança descompensada. Pela primeira vez estava ali, a um passo de acabar com tudo, porém não era o que gostaria de fazer. As primeiras vezes nos acompanham até o fim.


Pegou o celular, colocou uma música que sempre lhe tocava profundamente, deitou com os braços para trás e afirmou verdadeiramente: Eu me perdoo. Entendo a criança que fui e a adulta que me tornei. E hoje posso mudar a minha trajetória. O meu percurso começa aqui.

Nos fones ouvia Maria Bethânia gritar com a alma: “quem me leva os meus fantasmas? ” respondendo mentalmente: Eu levo os meus.



Maithe Prampero é apaixonada pelas palavras e pelos poderes da leitura e da escrita. Ela participa do Grupo de Mulheres do projeto É DIA DE ESCREVER.



Segue ela no @maithe.prampero

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