A vida sempre tentando me abafar. Quando nasci, decidiram que eu me chamaria Marcelo. Eu não me chamo Marcelo. Eles é que me chamam. Nem gosto desse nome. A capa do álbum de infância tem o Mickey estampado. Também não gosto do Mickey. O álbum está envelhecido, registra os primeiros anos das três décadas que me acompanham. Com a espiral solta, algumas páginas foram corroídas por traças, várias possuem marcas âmbar. Deveria revelar uma infância feliz. Deveria. Pode-se ver a chupeta azul, sapatinhos e roupinhas, todos azuis. Chega a entediar de tanto azul. O batismo, com toda aquela gente cristã circundando o bebê que berrava de incômodo. Nas páginas seguintes, com fotos já descolando, a primeira eucaristia. A renovação do sacrifício de Jesus Cristo no Calvário. Papai, mamãe, titios e titias. Chamaram todos os vizinhos e vizinhas. Tinha refrigerante, cerveja, acepipes e antepastos. Imagens incapazes de ocultar o que ali ressaltava: a minha cara de bosta! Em momento algum fui consultado. Não me perguntaram se me identificava ou não com aquilo. Se me sentia feliz. Então, nada mais honesto que registrar minha indignação. Uma fabulosa cara de bosta.
No colégio, as descobertas. Além das primeiras letras, conheci os primeiros amiguinhos, várias brincadeiras e um novo lúdico. Entre garatujas e atividades artísticas, tentativas de me comunicar. Aprendi a ler, escrever, mas era pelo desenho que eu melhor conseguia me expressar. Corria de números e das tabuadas, buscava no guache e na aquarela me esbaldar. Zombavam do meu jeito, do meu cabelo. Debochavam da minha voz e das minhas lágrimas. Irritadiço, agressivo comecei a ficar. Esbocei socos, tapas e até ponta pés cheguei a dar. As causas da irritação, bem... as professoras tentavam abafar. Mais fácil seria, à direção encaminhar. Escondiam de mamãe, que por sua vez, escondia de papai. A voz silenciada e o choro... o choro abafado.
Já adolescente, conheci João, junto dele, também o meu tesão. Ah mas e os irmãos? Lastimava a família, meu Deus, o que dirão? Fodam-se os irmãos. Eu queria era João. O primeiro namorado a gente nunca esquece. Nem que quisesse. João arrematou minha inocência e meu coração. Alguns anos mais velho, me conduziu pelas mãos. Vamos fazer sem camisinha, é bem mais gostoso, mozão. Ele me chamava de mozão. Claro que não consegui dizer não. Levado pela excitação, me entreguei com paixão. Mas de nada adiantou, não tardou e João terminou. Pedia, chorava, suplicava, mas João... João se calou. Partiu meu coração e tão logo...se mandou.
Amargurado, nos porões me afundei. A boates, bares e saunas me entreguei. Festas alucinadas, não tardou e viciei. Beijei, mamei, fodi e me rasguei. Vodca, cristais, cocaína e M&D, só não me piquei. E meus pais? Abafa! Abafa o caso. Um drogado na família demais seria, portanto, vazei. Bonitinho e gostosinho, sem dinheiro não fiquei. José Carlos, o coroa, ali me sustentei. Só não me apeguei. Roupas, perfumes, até pra gringa viajei, investi em academias e tonificado fiquei. Enquanto trabalhava, com muitos outros trepei. Quando cismado, sua carência manipulei. Até que nas drogas, novamente me engolfei.
Não tardou, adoeci. João Carlos esmoreceu e como sempre estava ali. No lindo apartamento do Itaim Bibi. Bebi, comi, cheirei e lambi. Até meu corpo delineado em hormônios, naquele tapete cair. No hospital acordei e já percebi, que meu caso era sério, tão logo não sairia dali. Perguntavam o que eu tinha, mas não respondi. Imagine a família cristã, hesitei, não retorqui. Caso questionem, diga que é câncer, pude ouvir. Estigma é foda, caguei pra essa gente pachola. Soube do vírus e... dei de costas.
A informação é minha, tenho direito à privacidade, não disse a José Carlos, nem por piedade. Essa estória de doença já deu, abdicar de farra e putaria, enlouqueceu? Tenho uma pá de seguidores, tudo fã meu, bonitinho e gostosinho, um dom que Deus me deu. Quero mais é dividir. O vírus que a vida me deu. Um, dez, vinte caras agora carimbados, rendeu. Quanto mais gente tiver, serão assim, como eu. Nem doeu.
Tudo ia muito bem, até esse outro vírus surgir. Lá do oriente. Caralho, não basta o meu. Fico fulo, impaciente. José Carlos não tira a máscara, logo será vacinado. Eu me lembro de tudo, mesmo aqui entubado. Cheio de cano na entranha, e nem foi pela vida de piranha. O álbum de família não sai da minha mente, deve ser efeito da minha temperatura quente. Um filme na cabeça, papai, mamãe, roupa azul, fotografia. Mesmo em coma, ouço vozes dizendo... tomografia. Deixei muita gente triste, sinto culpa. Agora não sei se adianta, mas peço desculpa. Sinto falta do lar. Sinto também, muita falta... de ar. Além do remorso no coração, quanta dor irmão, agora tudo o que posso, é suplicar por perdão. Abafa.
Thiago Loureiro é doutor em educação, e participa do projeto É DIA DE ESCREVER como um dos integrantes do Grupo LGBTQIA+.
Quer conhecê-lo um pouco mais? Segue lá, @loureiro_thi.
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