Dias tranquilos, acolhido e confortavelmente acomodado no aconchego materno. Meses reconfortantes em que eu me sentia aquecido. Protegido de todo mal, me sentia querido quando vez ou outra comentavam a meu respeito. Foram meses assim. Até uma manhã fria de inverno. Mexiam comigo. Queriam que eu saísse dali. Tentavam me tirar do meu cantinho escuro. Eu relutava. Por mim, ficaria ali pelo resto da vida, era tão bom. Não teve jeito, como eu não colaborava, forçaram a minha saída. Nasci a fórceps.
Assustei quando vi a luz, uma claridade que agredia aos olhos. Nunca fui afeito à claridade, nunca. Pessoas usavam roupas verdes, entre eles, um homem franzino de meia idade, que parecia estar com os olhos molhados. Não demorou para que me colocassem nos braços daquela que abrigou por meses. Ela também tinha água nos olhos. Diziam: “nosso menino, nosso menino”.
Não levou muito tempo para que eu fosse liberado daquele ambiente frio. Comentavam que eu iria para casa. Estava curioso. Assim que o homem de olhos molhados apareceu para nos buscar, me pegou em seu colo e seus olhos molharam novamente. Segundo mamãe, foi uma das duas vezes que o viu chorar em vida. Quando chegamos no Bairro do Estádio, a casa estava cheia. A tal casa parecia um lugar legal, lotada de gente querendo me conhecer. Diziam: “como ele é cabeludo, lembra o avô Joaquim”. O avô Joaquim estava ali, com quase 80 anos, exibia uma farta cabeleira branca. Realmente, eu mal vim pra esse mundo e já era tão querido.
Nossos anos no Bairro do Estádio foram felizes. Ali, aprendi a engatinhar, dar os primeiros passos e a andar de bicicleta. Na vizinhança quase não havia crianças, embora não faltassem adultos para brincar comigo. Meu contato com gente da minha idade se expandiu quando me matricularam no Antônio Maria Marrote, a escola infantil do bairro. Meu pai me levava e buscava na garupa da bicicleta vermelha. Às vezes, parava no clube ao lado e me deixava brincar no campo de futebol enquanto tomava algo no bar.
Aos 6 anos, estava pronta a casa que construíram. Nos mudaríamos do Bairro do Estádio, estive triste. A casa era maior, tinha mais espaço e um enorme quintal. Eu não queria. Agarrado nas pernas de Dona Benedita, não desgrudei. Não teve jeito, tive que ir. Era um bairro vazio, entornado por terrenos vagos. Havia uma casa em frente à nossa, e ali morava um menino dois anos mais velho, o Flávio. Um amiguinho, eu pensava. Ele me apresentou outros meninos do bairro e logo me enturmei. Jogávamos futebol e passávamos tardes inteiras junto do Atari. Flávio tirava sarro de mim, às vezes. Zombava do Fusca do meu pai e da maneira como se vestia. Caçoava das roupas da minha mãe e chegou a me bater quando o enfrentei. Ainda assim, íamos juntos para a escola no Fusca do meu pai.
Gostava daquela escola, fiz vários amigos. Conheci o Rodrigo, o menino ruivo da sala, meu melhor amigo. Aprontávamos muito, nos protegíamos. Foram mais de quinze anos de amizade, apartada pelos rumos da vida. Até hoje, me lembro de sua mãe, Dona Estela. Mulher de sorriso terno, nos servia Buraco quente no lanche da tarde. Tardes inesquecíveis naquele imóvel do Santa Cruz que hoje abriga um consultório odontológico.
Na escola, também conheci Lucas. Não era meu melhor amigo. Não. Com ele nutria outro sentimento. Um sentimento que eu não sabia lidar. Lidava sozinho, no banheiro da casa de quintal grande. Ele tinha a boca delgada e arroxeada, que pouco contrastava com sua pele morena. Até hoje me lembro o modo como ele tomava refrigerante na garrafa KS. Também perdemos o contato, quando encerrada a oitava série.
Colégio novo, amigos novos. Adorava as aulas de biologia e de português. E as tardes que passava jogando basquete nas quadras do colégio. Minha vida se resumia a estudar pela manhã e jogar basquete e super Nintendo nas tardes. Embora não tivesse muitos amigos por ali, não me faltava companhia. Ainda, eu tinha o Rodrigo. A mudança de colégio não nos separou. Até que ele conhecesse Gabriela. Então, sobrei. Não tive a mesma sorte. Não me interessava por meninas. No colégio, não tardou para que percebessem meu desinteresse e fizessem disso um motivo de chacota. Manhã sim, manhã também, Carlos me zombava.
Procrastinava minha sexualidade. Tolhia meu desejo. Depois de um hiato de 3 anos, chegou o momento do vestibular. Minha chance de deixar aquele colégio bosta e, com ele, todo o sofrimento. Vislumbrei sair de cidade, sair do estado. Não contava, contudo, com o que o destino me reservara. Julho de 1997, papai nos deixou. Nos deixou sem aviso prévio. Infarto agudo do miocárdio. Eu o amava. Amava muito. Ainda que tivéssemos nossas diferenças. Sabe como é, filho único temporão. Ainda, ele abusou um pouco da bebida. Nada que afetasse meu amor. Alegria sem igual eram nossas manhãs de sábado na feira livre da cidade. Com sua sacola de ráfia azul, adorava comprar legumes frescos, ovos caipiras e carne suína na banca do Juca. Finalmente, nos acomodávamos de frente para a capela da praça para um deleite na barraca de pastéis. Pastéis de queijo e coca cola.
Quando na cidade, não há um sábado que eu não retorne para aquela barraca e peça pastéis de queijo. O pasteleiro não é mais o japonês, o vinagrete agora tem coentro. Pouco importa. É meu momento de conexão com Gilberto.
Acabou que não fiz faculdade em outro estado, preferi ficar perto de minha mãe. Mudei o estilo de roupa e o corte de cabelo. Passei a usar perfume e tive lá meu sucesso com as garotas. Embora meu desejo não fosse por garotas. Final da década de 90, cidade interiorana com forte apelo conservador, sabe como é. A autoestima agradeceu. O adolescente de pele acneica debochado no colégio, podia desfilar com garotas bonitas pelas festas da cidade. A autossabotagem durou até o final da faculdade. Quadro de depressão aos 21 anos.
Antidepressivos tricíclicos, sonolência e 8 quilos a mais. Um retorno nem tão triunfal para um jovem de 21 anos. Carente, conheci alguém pela internet. A vida foi boa comigo, talvez eu não estivesse digitando essas palavras nesse momento. Carência, um sentimento traiçoeiro. A despeito das dores, passei por uma imersão nos porões clandestinos. Vivi momentos que não imaginava que pudessem existir, momentos de uma internet incipiente.
Se há pessoas tóxicas, há também as medicinais. Não tardou para que conhecesse alguém que valesse a pena. Isso tem 17 anos e cá estou contando a história. Hoje é domingo, estamos na casa de minha sogra. O aroma que vem da cozinha perfuma a casa. Teremos pesto de manjericão.
Thiago Loureiro participa do projeto É DIA DE ESCREVER como um dos integrantes do Grupo LGBTQIA+.
Quer conhecê-lo um pouco mais? Segue lá, @loureiro_thi.
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