O Milagre
- Edu Mussi
- 5 de jun.
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Levantei as pálpebras lentamente e esperei ajustar o foco de meus olhos. A primeira visão que tive foi de um plano liso, acima de minha cabeça, na cor branca e iluminação indireta. O local estava muito frio e vazio, só escutava o som contínuo de bip. Sem me mexer, percebi que estava deitado com o peito pra cima e ao meu corpo estavam conectados fios a uns aparelhos, que não identifiquei, colocados ao lado de minha cama. Virei lentamente minha cabeça para a esquerda e vi que havia alguém deitado em outra cama, inerte e cheio de conexões, também. Olhei para o lado direito e outra cama também estava ocupada na mesma situação. Da posição em que me encontrava, não conseguia saber se eram homens ou mulheres. De repente, ouvi um barulho de porta se abrindo e uma senhora, vestida de branco se aproximou de mim e disse sorrindo:
— Que bom! O senhor acordou. Fico feliz por isso.
— Onde estou?
— O senhor está numa UTI se recuperando de um problema que teve no coração.
— Que problema?
— Não sei, mas os detalhes o médico lhe responderá quando vier lhe ver novamente. Hoje ele já passou por aqui, mas o senhor estava dormindo. Aliás, o senhor estava em coma há cinco dias. Mas agora, pelo visto, voltou ao normal.
— Só amanhã?
— Sim, só amanhã porque o dia já está terminando. Tenha paciência que de manhã cedo ele chegará. – Trocou um frasco contendo um líquido que desconheço, afastou-se e foi atender as outras camas.
Estava sem sono, mas fechei os olhos e tentei lembrar-me do que aconteceu comigo. Forcei a memória, mas o que veio na lembrança foram pensamentos a partir do final de minha adolescência e início da fase adulta. Os fatos vieram à tona nas minhas recordações como se tivessem relação com os últimos acontecimentos sobre os quais eu não conseguia recordar de nada e que me trouxeram àquela cama de hospital.
Sou filho único de um pai que foi funcionário de uma empresa estatal onde exercia o cargo de contínuo. Minha mãe fazia doces e salgados por encomenda. Vivíamos uma vida simples, sem luxo, mas tínhamos o básico para viver. O salário de meu pai não seria suficiente para nos sustentar, porém, ao juntar com os rendimentos de minha mãe, a situação aliviava bastante. Minha mãe ganhava bem com as encomendas. Se tivesse tino empresarial, com certeza ganharia muito dinheiro, porque os produtos que ela fazia eram de excelente qualidade. Não dava conta de atender todas as encomendas, até porque trabalhava apenas com uma moça que dividia as tarefas na fabricação dos doces e salgados. Estudei numa escola privada com bolsa integral. Morávamos numa cidade do interior, bucólica, onde todos se conheciam. Eu tinha muitos amigos, mais ou menos da mesma idade que eu, de forma que constituímos um grupo heterogêneo, mas de convivência maravilhosa.
Quando chegou a época de ir para a faculdade, tive que mudar para a capital. Ingressei na Universidade Federal e escolhi um curso baseado no que poderia me proporcionar dinheiro, muito dinheiro. Não me preocupei com a questão da vocação. Arranjei uma vaga no alojamento da Universidade e não tinha dispêndio com moradia. O dinheiro que meus pais me mandavam não era muito, mas o suficiente para comer, transporte e pequenos gastos com o curso. A grana era contada, mal dava para tomar uma cerveja. Quando ia para farra com meus amigos, eles que pagavam minhas despesas com a bebida. Não tinha namorada. Meus relacionamentos sempre foram com as “mulheres de vida fácil”, como diziam na minha cidade. Quando eu ouvia isso, pensava: fácil, é? Vai abrir tuas pernas três, quatro vezes todas as noites pros homens a troco de uma merreca de dinheiro. Fiz boas amizades nos meretrícios que frequentava. Às vezes elas iam comigo para cama “fiado”. Deixavam para eu pagar depois, quando pudesse.
Já enfronhado na vida noturna da capital, comecei a perceber que o dinheiro que recebia dos meus pais, já não era suficiente nem para comer, devido aos gastos extras que não poderiam ser incluídos no orçamento de um estudante “pé-rapado” como eu. Então isso começou a me incomodar. Precisava arranjar uma solução. Um emprego, um trabalho que me proporcionasse renda para financiar minhas diversões.
Ao passar por uma banca de revistas, vi uma manchete num jornal – BANCO DO BRASIL FARÁ CONCURSO PÚBLICO. Parei, li a reportagem e saí de lá convencido que deveria fazer aquele concurso. Pedi um dinheiro extra ao meu pai para pagar a inscrição. Minha mãe ficou meio contrariada com minha decisão. Ela não queria que minha faculdade fosse prejudicada. Meu pai, ao contrário, me incentivou. Fiz o concurso e passei. Quando saiu minha convocação para assumir a função de escriturário, começou o grande enrosco em minha vida.
Fui nomeado para começar a trabalhar numa agência de uma cidade do interior, distante da capital, assim como de minha cidade. Foi, talvez, a primeira bifurcação que enfrentei na vida – continuar estudando ou ir trabalhar num banco. Não foi difícil de decidir, pois no momento estava passando por grandes dificuldades financeiras, decidi então trancar a matrícula e ir embora, atuar como bancário, consciente de que não ganharia muito dinheiro, como havia sonhado ao escolher o curso universitário.
E a vida de bancário foi correndo acompanhando o tempo que nem percebia a forma volumosa que minha barriga ia tomando. Vida de bancário em interior é assim: trabalhar o dia inteiro e à noite ir para um boteco tomar cerveja. Depois dormir e acordar para trabalhar mais outro dia inteiro.
Para galgar cargo na carreira, pulava de cidade em cidade pelo interior, até assumir a função de gerente geral de uma agência. Já estou com 30 anos de banco e ainda não pretendo parar de trabalhar. Esqueci completamente a Universidade. Nunca me casei. Nunca formei família. Tinha meus casos amorosos, sem nenhum compromisso. Já estou com 60 anos. Meus pais faleceram. Primeiro foi meu pai, depois minha mãe. Não me perguntem quando, pois não gravei essas dias. Datas como essas não faço questão de guardar.
Certa vez fui para a capital participar de uma reunião de gerentes...
O médico entrou na UTI e se dirigiu à minha cama sorridente e falando:
— Parabéns, você pulou uma bela fogueira. Pela sua aparência, vejo que está bem recuperado, mas vamos fazer uns exames mais detalhados no seu coração para termos a certeza de que não ficou nenhuma sequela. Aí então lhe darei alta.
— Doutor, o que aconteceu comigo? Perguntei ao médico antes que ele fosse embora.
O médico parou, franziu a testa, me olhou por alguns instantes e então respondeu:
— Você não recorda de nada?
— Nada, doutor. Não lembro nem onde estava.
Ele aproximou-se de minha cama, com seu rosto perto do meu, disse em voz baixa:
— Você foi retirado do quarto de um motel desacordado, pois tomou quatro comprimidos de Viagra de uma única vez. Foi um milagre você ter sobrevivido.

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