A Dor Que Gera Sonhos
- Edu Mussi
- há 1 dia
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Dia exuberante. Sete horas da manhã, a família inteira sentada à mesa – Alfredo, o pai; Mariana, a mãe e o casal de filhos. Pati com dez anos e o Cadu, com oito anos. Todos fazendo a primeira refeição farta do dia - tapioquinha, cuscuz, ovos mexidos, pão integral, manteiga, queijo, mamão, banana, abacate e café puro. Ninguém toma leite naquela casa,
A família mora numa casa simples, de alvenaria, sem luxo, mas bem confortável, onde todos ficam bem acomodados. Possui uma boa varanda na qual fazem reuniões com amigos para discutirem sobre a vida e celebrarem a paz. O quintal, as crianças usam para suas brincadeiras com os amigos e há um espaço para cultivo de horta. O bairro não é grande e localiza-se a oito quilômetros do centro. Sua estrutura é formada por uma avenida principal com duas pistas separadas por canteiro largo e arborizado; as travessas, de pista única, são sem saídas e as extremidades são arborizadas onde abriga uma diversidade de passarinhos.. As casas não têm muro alto, são apenas separadas por uma mureta com cerca de um metro de altura, cuja finalidade é mais para evitar a entrada indevida de cachorros que vivem soltos pelas ruas. Praticamente todos os moradores da redondeza se conhecem. A criminalidade por aquela região é nula, como na cidade toda. O transporte público é excelente. Passam todos os ônibus que eles necessitam para seus deslocamentos, inclusive há um ponto próximo à casa deles.
Após o desjejum, os quatro seguem seus destinos. Alfredo e Mariana tomam o ônibus que os leva para o centro urbano e as crianças pegam o ônibus escolar, ambas estudam na mesma escola, mas em turmas diferentes. A escola é em tempo integral e gratuito como todas as escolas do país. Não há estabelecimento de ensino particular. O sistema educacional é gratuito, desde o ensino básico até a Universidade, inclusive pós-graduação. Os professores são muito bem valorizados. É considerada uma das mais importantes profissões. Nenhum profissional desta área precisa ministrar aula em mais de uma escola para sobreviver. São contratados com dedicação exclusiva para um única escola, a fim de que possam ter tempo para dar mais atenção aos alunos e se preparar para o trabalho rotineiro. O material escolar necessário também é fornecido pelo poder público. Não há uso de uniformes cada um vai para a escola do jeito que achar melhor. Além das disciplinas curriculares básicas, os alunos estudam mais duas línguas estrangeiras. Aula de música, dança, natação, jogos de futebol, basquete, vôlei e há também um tempo disponibilizado para que todos possam ir à biblioteca ler e fazer pesquisas. A leitura é estimulada pelos professores e é muito comum encontrarmos os alunos com um livro na mão. Os alunos ingressam na escola às oito horas e saem às dezoito horas. São distribuídas quatro refeições de excelente qualidade e o cardápio e adequado para cada região do país: café da manhã, lanche, almoço e lanche da tarde.
Mariana é dentista. Ela trabalha em um dos centros de saúde. Não há consultório particular no país. O atendimento é gratuito para toda a população independente de sua situação financeira.
Alfredo é formado em sociologia com extensão em antropologia. Fez o mestrado em políticas de distribuição de renda e o doutorado em políticas do bem-estar social. Trabalha no Ministério da Economia, no departamento que trata de políticas de distribuição de renda. Ele tem um cargo muito importante e é bastante requisitado pela imprensa e outros meios de comunicação para prestar esclarecimentos e informações úteis à população. É querido por todos. Tem ideias arrojadas de políticas que geram emprego e consequentemente renda à população ativa. As opiniões e sugestões dele são tão coerentes que nem a “turma do contra” acha algum argumento para contrapor ou criticar as proposições dele. Ainda como universitário ele já era bastante atuante durante as aulas. Os professores o adoravam porque ele trazia assuntos provocantes que geravam debates saudáveis na sala de aula.
Ano de eleição presidencial no país, já no segundo turno. Neste dia, à noite, Alfredo e Mariana sentaram-se no sofá da sala, em frente à TV, para assistir ao debate entre os dois candidatos. A um dos candidatos lhe foi perguntado sobre educação, que respondeu:
- Os alunos perdem muito tempo estudando besteira que não serve para nada. Tem que focar em Matemática e português. Pra que estudar sociologia, filosofia? Isso só serve para encher a cabeça dos alunos com ideias esquerdistas, comunistas. Eu, quando for presidente, vou mandar alterar todos esses livros que são distribuídos para os alunos. Os livros estão cheios de muita letra que só fazem confundir a cabeça deles. Falar sobre sexo na escola é inadmissível. Hoje eles até distribuem kit gay só para mexer com a cabeça das crianças e transformar os meninos e meninas em homossexuais. Estudar em Universidade é outro desperdício de dinheiro público. Todo mundo tem ânsia pra ter um diploma. Para que? Hoje as Universidades são um antro de maconheiros que só fazem gastar o dinheiro público e não estudam nada. Vou acabar com isso.
O outro candidato respondeu a mesma pergunta:
— A educação tem que ser pública. É uma obrigação do Estado. Os professores precisam ser mais bem remunerados. Necessitam ter melhores condições de trabalho. É inadmissível um professor ficar pulando de escola em escola para poder ganhar um dinheirinho a mais para sobreviver. É necessário que as crianças recebam uma boa alimentação na escola. Uma comida de boa qualidade. As Universidades também devem ser olhadas com muito carinho porque é de lá que saem nossos cientistas. Em meu governo a educação, ciência, tecnologia e cultura terão toda a atenção que merecem.
Quando o assunto sobre o meio ambiente veio à tona, o primeiro candidato discursou o seguinte:
— Precisamos explorar mais a Amazônia. Há muita riqueza por lá nas mãos dos "índios" que poderiam ser usadas para o nosso desenvolvimento. Para que o índio quer tanta terra? Em meu governo não haverá nem um centímetro quadrado de área demarcada para índio e vou mandar fazer uma revisão das reservas existentes hoje. O agronegócio precisa ser expandido, tanto na Amazônia como no Pantanal. Vou acabar com essa fábrica de multas que imputam aos fazendeiros. Eles terão toda a liberdade para desmatar o que for necessário para fazer crescer os seus bois e suas plantações de soja e milho. Incentivarei os garimpeiros a retirarem as riquezas minerais que existem naquela região.
O outro candidato apenas respondeu:
— A Amazônia precisa ser preservada. Os indígenas precisam das terras para sobreviver e ao mesmo tempo nos ajudar a conservar a floresta. O agronegócio precisa de atenção, claro, mas com responsabilidade sem prejudicar o meio ambiente. Iremos coibir o garimpo, principalmente nas terras indígenas.
De repente Alfredo escuta um barulho de gritos de alguém desesperado. Abre os olhos, senta-se, olha em volta de si e percebe que tudo foi um sonho misturado com pesadelo. Se dá conta de que tudo aquilo que ele viveu durante o sono não existia. O país encontrava-se sob uma ditadura e a situação estava muito tensa. Morava sozinho e foi preso em sua casa, sem entender os motivos. Ele era apenas um modesto professor de sociologia na Universidade, mas de vez em quando emitia algumas opiniões a respeito do cenário político que o país estava vivendo. Encontrava-se preso nos porões de um quartel militar Já havia sido submetido a várias sessões de tortura e estava todo machucado, com o corpo cheio de hematomas. De repente ouve a porta metálica da cela abrir-se, dois militares entram no cubículo e um deles diz:
— Vamos lá pra sala, valentão, ter mais uma conversa.

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