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Vila Dos Sonhos


O lugar é maravilhoso. Só não se pode chamar de paraíso porque está aqui na Terra. Na saída da cidade, sentido leste, por uma rodovia asfaltada, pista única e mão dupla, vê-se ao longe duas montanhas quase que tombadas uma sobre a outra, dispostas como se estivessem se apoiando uma na outra. Ao nos aproximarmos desses dois monumentos erguidos pela natureza, percebemos a beleza de sua cor – de um verde musgo, cuja tonalidade varia de acordo com a intensidade da luz solar. Essa montoeira de rocha e terra coberta por uma vegetação nativa que ainda não sofreu os ataques da motosserra e do fogo dos homens gananciosos que se escondem no “mercado”. Ao pé dessas montanhas, distante mais ou menos, dois quilômetros da estrada asfaltada, há um vilarejo com uma única rua de doze metros de largura, onde foram construídas vinte e quatro casas ocupadas pelos moradores nativos daquele lugar. Esses imóveis estão dispostos assim: doze casas – seis de um lado da rua e seis do outro. Em seguida um grande espaço em forma de círculo, Logo após este espaço, mais doze casas divididas seis a seis, uma de frente para outra. A rua termina numa pequena praça servida com diversos bancos. Colada à praça há uma praia de areia branca, banhada por um rio exuberante, na cor azul anil, de água cristalina que corre mansamente no sentido norte. A praia é de uma areia tão branca que dói nos olhos sob a luz intensa do sol. A textura da areia parece com um farelo de aveia fino.


            No grande círculo que há entre os conjuntos de casas foram instalados: uma biblioteca; uma sala de aula para alfabetizar as crianças; um pequeno ambiente com uma mesa de bilhar para lazer. Em um ambiente separado há uma enorme mesa com cadeiras para as reuniões comemorativas e festas. Este mesmo lugar também é usado para as reuniões de deliberação da comunidade e outros assuntos específicos da vida dos moradores. Uma vez por semana, reúnem-se voluntariamente para discutirem sobre política. Interpretam o cenário político do momento; opinam sobre as políticas públicas adotadas pelo governo e outros assuntos pertinentes trazidos por algum morador. É muito comum fazerem leituras coletivas e depois interpretam seu conteúdo comparando com os acontecimentos atuais. Recentemente eles terminaram de ler e discutir o livro 1984, de George Orwell. A comunidade inteira é politizada e pela ótica dos que têm tendência de direita ou extrema direita, considerariam todos esses moradores comunistas, simplesmente pelo modo de vida que levam e se relacionam.


            As crianças, após a conclusão da alfabetização na comunidade – pelo método do Paulo Freire – se deslocam até a cidade  para continuar os estudos. Precisam andar a pé os dois quilômetros da trilha até a rodovia asfaltada, tomar o ônibus para chegarem na escola municipal. Através de um acordo com a Prefeitura eles conseguiram passe livre para as crianças não pagarem a passagem de ônibus. Mas isso só é válido em período escolar e de segunda a sexta-feira.


As casas são todas iguais. De construção simples – paredes de madeira e cobertura com telhas de barro. Piso de cerâmica e forro de madeira. Apenas as paredes da cozinha e banheiro que são de alvenaria de tijolo. A arquitetura da casa é constituída por uma sala, três quartos, cozinha e um banheiro. Toda rodeada por uma ampla varanda. Não há cercas separando as casa e estão afastadas uma da outra a uma distância de dez metros. Na entrada da comunidade está instalado uma roda de vento que movimenta uma bomba para retirar água de um poço profundo e jogar num conjunto de três reservatórios de água com capacidade para dez mil litros cada um. Desses reservatórios a água é distribuída através de uma rede hidráulica para as casas. Além disso está instalada uma bomba potente, de três CV para extrair a água do poço e jogá-la nos reservatórios, no caso do cata-vento falhar por algum motivo. Todo esse sistema foi construído pelos próprios moradores e o material foi recebido através de doação de uma ONG. Não havia luz na comunidade por um longo tempo. Veio o programa de “Luz Para Todos” do governo federal e a comunidade foi contemplada com esta benfeitoria. Todas as casas possuem banheiro interno e são providas de fossa ecológica. Para racionalizar o espaço construíram uma fossa de bom tamanho para atender a cada duas casas. Sobre essas fossas plantaram várias bananeiras.


            A base de sustentação dos moradores é a pesca – lá só moram pescadores e suas famílias que foram passando de geração em geração. Mas não vivem só da pesca. Há na comunidade uma horta; criação de doze cabras e dois bodes – um era capado para engorda e abate; seis porcas e dois porcos – um inteiro e um capado - confinados numa pocilga muito bem cuidada; o espaço do galinheiro está dividido em três áreas de manejo, isoladas para as galinhas ciscarem. De vez em quando fazem o rodízio dessas áreas. Há duzentas galinhas cuja finalidade é apenas a produção de ovos para o consumo interno, aliás, tudo que é produzido lá é para o consumo interno. Os moradores vivem apenas do que produzem e comercializam somente o excedente da sua produção. Tudo na comunidade é comum a todos. Ninguém tem propriedade privada no vilarejo. Os frutos de sua produção são partilhados igualmente e todos têm acesso aos bens comuns da comunidade. Eles dividem os trabalhos de forma igualitariamente. A solidariedade está presente em todos os momentos do vilarejo e as tarefas do cotidiano, quer seja de manutenção, quer seja de produção e são executadas tanto pelos homens como pelas mulheres. Previamente eles fazem a divisão do trabalho de tal maneira que não há e nunca houve desentendimento a esse respeito. Apenas as atividades da pesca que são realizadas só pelos homens. Um determinado grupo cuida da pescaria; outro da manutenção das canoas; outro dos equipamentos e outro da divisão e comercialização. O principal peixe que eles pegam pelas imediações é o tucunaré, mas também pescam pacu, curimatá, apapá e jaraqui. A disponibilidade de peixes por ali é muito grande. Comumente eles pescam entre cento e cinquenta a duzentos quilos todos os dias. Separam uma parte para o consumo e a outra levam para a cidade e vendem diretamente ao consumidor ou para os restaurantes e peixarias. Tem dias que alguns deles saem da parte principal do rio e entram numa área chamada igapó. Neste local encontram muito tambaqui que vão pra lá comer sementes que caem das árvores. Apesar da fauna ser bastante diversificada, eles jamais comiam carne de caça. Isso, para eles, é uma agressão à sua ideologia. O porco capado quando já está muito grande e gordo eles o abatem e fazem uma grande festa para que todos degustem da carne coletivamente. Quanto as galinhas eles só a comem quando chega a época de renovar o plantel – separam as que deixaram de colocar ovos, reúnem um número suficiente para abater, preparam-nas de várias maneiras, promovem um grande almoço com a participação de todos.


            Na horta eles produzem diversas verduras e legumes. Há uma área destinada só para isso, e está cercada com o objetivo de evitar o acesso de outros animais. Contígua a área da horta tem um barracão dividido internamente em ambientes destinados à guarda das ferramentas; armazenamento da ração e apetrechos da pescaria. Há um espaço reservado para moer a mandioca e fazer farinha. Logo após esse barracão, há um pomar com muitas frutas da região.




            A organização administrativa da comunidade é muito simples. Não há chefes ou coisa parecida. Não há ninguém com privilégios. Tem um líder que foi escolhido unanimemente, cuja função é coordenar, orientar, aconselhar e tratar de assuntos relacionados com a comunidade e com pessoas estranhas à comunidade. Um tesoureiro que cuida das finanças – ele recebe o dinheiro das vendas; paga as contas; faz todo o trabalho de banco, organiza e apresenta regularmente a situação financeira da vila. Há uma pessoa responsável pelo abastecimento da vila. Ele compra os bens de consumo necessários para todos - alimentos que eles não produzem ou material de uso na manutenção da vila. Também há uma pessoa responsável pela manutenção e conservação da vila - coordena os reparos e manutenções dos equipamentos; roçagem do terreno e outros serviços pertinentes. Quando necessário, contratam pessoas para prestar alguma manutenção específica. No final de cada ano é feito o balanço e de todo o dinheiro que sobrou dividem em partes iguais e proporcionais pelas vinte e quatro famílias.


            Certa vez, num final de tarde de uma sexta feira, chegou um carro tipo jipe 4 x 4 e estacionou próximo ao cata-vento. Desceram quatro homens, sendo que um deles trajava paletó preto, camisa branca e gravata preta. Este perguntou a um rapaz que estava roçando nas proximidades – quem é o líder aqui?


            O rapaz respondeu: Seu Tonho. Ele está ali na primeira casa da direita.


            O homem de preto foi até lá e Seu Tonho já estava esperando na varanda pois havia escutado o barulho de carro - coisa incomum por ali.


           – Pois não – disse Seu Tonho.


            Vim lhe trazer esta intimação para desocupar esta área dentro de trinta dias, pois o dono vai construir um grande empreendimento turístico aqui.


            Seu Tonho num gesto de espanto disse: O que, meu senhor? Dono desta área? vivemos aqui pra mais de cem anos. Isso era do pai do pai do meu avô, depois passou pro meu avô, depois pro meu pai e agora pra mim. E já vai passar pro meu filho que até já pesca conosco.


O senhor está enganado, disse o homem de preto, sem prolongar a conversa. Está aqui a intimação e depois de trinta dias o proprietário chegará com as máquinas pra derrubar tudo, limpar a área, mesmo se vocês estiverem aqui. Os quatro homens retornaram para o carro e foram embora.


Depois desse dia e nos trinta dias seguintes, a comunidade inteira passou o tempo todo apreensiva, tensa, muito preocupada, sem saber o que fazer, pois nunca havia acontecido algo parecido durante a história toda do vilarejo. No trigésimo dia Seu Tonho escuta barulhos altíssimos se aproximando. Eram tratores, caminhões basculantes, muitos homens com ferramentas de demolição. Um dos tratores provido de pá acoplada na frente se aproxima da torre do cata-vento e, sem muito esforço, joga tudo no chão. Em seguida derruba a estrutura dos reservatórios de água e tudo vai por água abaixo. O operador da máquina direciona o trator no rumo da casa do Seu Tonho e ao chegar começa a demolição pela varanda atingindo a sala.


Josefa, esposa do Tonho, acorda, acende a luz do quarto e vê o marido se esperneando todo na cama, gemendo. Ela grita – Tonho! Tonho! O que está acontecendo, homem?!


Tonho se senta na beira da cama, olha para os lados, para cima, levanta-se, abre a janela, vê tudo calmo, retorna e senta-se novamente na borda da cama e murmura: - Nada não, mulher. Depois pergunta:


– Josefa, por acaso veio até aqui algum carro por estes tempos?


– Claro que não, homem! Esta estrada que nos leva até a rodovia mal dá pra andar à pé! Até nosso jumento já não quer puxar a carroça com medo de cair num buraco, como é que vai passar carro?


– Então foi um pesadelo.

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