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Desenterrados

O casal Abelardo Costa e Nice Silva, carinhosamente chamada de Nicinha, tinha um filho de nome Jackson Silva Costa. Ele foi registrado com este nome porque o pai adorava ouvir o cantor Michael Jackson. Mas desde pequeno o menino era chamado de Jaque. O casal teve outros dois filhos depois do Jackson, mas ambos não sobreviveram ao ambiente em que viviam. Não por causa do lugar, pois as terras eram boas, porém a miserabilidade a qual a família era submetida comprometeu a sobrevivência daquelas crianças. O Jackson foi exceção. Tornou-se um garoto forte, de excelente resistência orgânica. Era um menino magro e comprido, sem nenhum músculo aparente, porém dotado de uma sagacidade e inteligência fora do padrão para o ambiente em que vivia. Tanto Abelardo como Nicinha eram dotados de uma sabedoria que saltava aos olhos de quem se relacionava com eles. Eram pessoas de pouca escolaridade, mas se expressavam corretamente e tinham uma consciência de vida e de política melhores do que muitas pessoas com diploma de curso superior espalhadas por aí. Estavam sempre bem-vestidos, relativo à limpeza e simplicidade, porque eles sabiam que nesse mundo em que viviam a aparência era o que levava os outros a os julgarem. Inclusive eles eram bonitos. Sempre quando estavam sentados à mesa para jantar, aproveitavam o momento para aconselhar o filho. A mãe dizia:


— Nunca faça nada a alguém com algo que você não queira que façam com você.


O pai também falava:


— Filho, cuidado com o que você vai semear, porque você pode colher frutos indesejáveis.


Abelardo é um homem forte, alto, com os músculos à mostra, resultado dos esforços que faz diariamente em sua roça. Muito calmo, prudente e com a ajuda de dois companheiros ele planta milho, feijão, mandioca que dividem os lucros com o apurado na venda da produção. Não é muito, mas dá para sobreviver.


Nicinha além das atividades domésticas, cuida de uma horta de verduras, legumes  e hortaliças. O filho a ajuda na manutenção e colheita.


Certo dia chegou em sua propriedade um sujeito desconhecido procurando pelo Abelardo. Nicinha informou que ele estava na roça trabalhando. O homem foi até ele e, sem rodeios, lhe disse:


— Abelardo, estou aqui em nome de meu patrão. Ele quer comprar essas terras e já pôs o preço.


— Mas eu não quero vender minhas terras, diga ao seu patrão.


— Abelardo, o senhor não pode negar a venda de jeito nenhum, porque se fizer isso, considere-se um homem morto. E tem mais, não vá fazer nenhuma denúncia para as autoridades e nem para esses jornalistas fofoqueiros que vivem se metendo na vida do pessoal daqui. Se o senhor fizer isso, também vai morrer e toda sua família. E lhe digo mais, o patrão tem muitos amigos fortes, portanto, não vai acontecer nada com ele. Amanhã volto aqui com os papéis e o dinheiro que depois de assinado, vocês terão uma semana para desocupar as terras.


Depois que o desconhecido foi embora, Abelardo correu até a casa do vizinho para trocar uma ideia sobre o assunto e encontrou a família arrumando seus pertences e se preparando para viajar.


— O que aconteceu, compadre? Está indo embora?


— Estamos, compadre. Vendi minhas terras para um sujeito que veio aqui. Não tive outra alternativa pois ele me ameaçou de morte. Não quero virar herói morto.


Sem ter mais nenhum argumento, Abelardo retornou à sua casa e reuniu sua esposa, filho e comunicou o ocorrido. Jackson, por ser mais jovem e rebelde, ficou revoltado, disse para o pai não vender e enfrentar esses caras. Ir na polícia.


— Isso é bobagem e seria a pior atitude a tomar. Essas pessoas têm respaldo. São protegidas e nós somos um “Zé ninguém”. Portanto, venderemos as terras e iremos para a capital recomeçar nossas vidas.


A propriedade foi vendida por uma ninharia e a família pegou as roupas e objetos pessoais, alguns utensílios doméstico e desocupou o imóvel no prazo acertado. Seguiram para a capital num caminhão pau de arara em busca de nova vida e sobrevivência.


Chegando ao destino e, ajudado por um amigo que já andava por lá, Abelardo comprou um pequeno barraco na periferia da cidade com o dinheiro, fruto da venda de sua terra. O lugar era bom, pois não alagava quando chovia; não havia organização criminosa instalada no bairro. Abelardo, para estimular a família dizia:


— Não é tão longe do centro, apenas duas horas de ônibus.


No dia seguinte, Abelardo foi ao SINE – Sistema Nacional de Emprego, cadastrou-se e poucos dias depois fez entrevista para disputar uma vaga como porteiro de um condomínio de luxo. Apesar da inexperiência neste trabalho, ele saiu-se muito bem na conversa que teve com a entrevistadora e conseguiu o emprego, pois além de estar bem-vestido, expressou-se com clareza e demonstrou ser uma pessoa com muita iniciativa, gentil e comunicativo.


Depois que assumiu seu posto na portaria, dentro de curto espaço de tempo, adquiriu simpatia de todos os moradores e, com seu jeito alegre de lidar com as pessoas, construiu um bom relacionamento com os condôminos. Em vista disso, conseguiu emprego para Nicinha trabalhar como cozinheira para uma senhora que mora sozinha num apartamento do sétimo andar.


Nicinha, além de cozinhar muito bem,  tem uma conversa muito agradável, inteligente e, por causa disso, às vezes até dava conselhos para a patroa. Em pouco tempo as duas se tornaram amigas. O salário de ambos era razoável e dava para sobreviver por causa da vida simples que levavam. Tinham seus contratos de trabalhos devidamente registrados de acordo com a legislação trabalhista.


Quanto ao Jaque, que já estava com quinze anos de idade, foi matriculado numa escola pública que ficava próxima da casa deles. Pela manhã ele ia pra escola e no retorno, por volta de meio dia, ficava sob a vigilância e cuidados de Dona Nicota, uma senhora muito generosa, que morava ao lado deles e que se tornou uma grande amiga da família. O garoto não dava trabalho nenhum para senhora Nicota, pois era um menino que gostava de jogar bola, empinar papagaio e outras brincadeiras típicas da idade com os garotos do bairro, mas havia algo que o diferenciava dos outros meninos de sua idade. Ele estudava com afinco e principalmente, gostava de ler muito. Seu pai sempre lhe trazia livros que adquiria num sebo localizado nas proximidades do prédio onde trabalhava.


O tempo foi passando e quando Jaque completou dezoito anos, foi trabalhar. Comprou uma bicicleta usada de um colega do bairro e iniciou sua labuta como entregador de aplicativo. Trabalhava o dia inteiro, saia pela manhã e só retornava à noite. Concluiu o ensino médio, conseguiu uma bolsa desses programas do governo e iniciou seu curso de Direito. Era um rapaz muito focado naquilo que queria. Adquiriu de seus pais a consciência política. Por ser um rapaz sagaz, inteligente e extrovertido, tornou-se uma pessoa muito conhecida no bairro e ele também conhecia todo mundo. Era muito prestativo e estava sempre disponível a oferecer ajuda a quem precisasse. Sua grande paixão era ler. Lia temas diversos como: política, economia, filosofia, autobiografia, jornalísticos e romances clássicos e publicações de novos autores brasileiros.  Estava sempre com um livro debaixo do braço. Gastava uma quantia considerável de sua renda com livros comprados nos sebos.


O trabalho que exercia como entregador lhe acrescentou uma grande experiência de vida e, principalmente de política. Andar por lugares diversificados fazendo suas entregas, lidando com diferentes tipos de pessoas. Adquiriu muitas informações sobre a cidade, ouvia dos moradores reclamações e do que mais precisavam. Foi um verdadeiro laboratório para o Jaque.


Por indicação de um amigo que conheceu pelos caminhos por onde andava, filiou-se a um partido da esquerda, começou a frequentar a sede e participar de reuniões como mero expectador. Pouco a pouco foi se inteirando do movimento político-partidário e num curto espaço de tempo lhe colocaram em uma comissão dentro do partido, de maneira que isso lhe permitiu expor suas ideias e projetos. A forma enfática e coerente como ele falava chamou a atenção dos dirigentes do partido a ponto de lhe oferecerem uma vaga de candidato a vereador para as próximas eleições. Jaque não pensou duas vezes, desafios era com ele mesmo, e aceitou a incumbência.


Foi eleito com uma quantidade recorde de votos que surpreendeu o mundo político da região e até mesmo os membros mais experientes do partido ficaram estarrecidos com esse excelente desempenho que obteve nas urnas. Esse foi o primeiro fato que fez com que os meios de comunicação desviassem seus os olhos em direção ao novo vereador que havia chegado na cidade.


No seu discurso de posse na Câmara de vereadores, Jaque chamou mais uma vez a atenção de toda a mídia. Foi muito emblemático em sua fala, desprovida de expressões fantasiosas, nem carregadas de eufemismos e metáforas. Ele dizia muito claramente do que a cidade e a população precisava com sugestões pertinentes e plausíveis. Os principais itens de extrema necessidade que ele relacionou foram:


Saneamento básico e distribuição de água de boa qualidade com foco nos bairros periféricos, visto que a população daquelas regiões viviam em condições precárias de higiene, comprometendo diretamente na saúde do povo.


Educação pública com tempo integral e de boa qualidade, melhorando os ambientes escolares, dotando-os de mobiliários e equipamentos que propiciassem um desenvolvimento escolar com mais eficiência. Contratar mais professores e melhorar seus salários para que não precisem trabalhar em mais de um emprego para sobreviver.


Na área da saúde, chamou a atenção para a urgência na melhoria dos postos de atendimento, provendo-os com materiais e insumos suficientes para prestar uma boa assistência aos que lá se dirigiam. Ajustar o quadro de pessoal contratando mais médicos e técnicos, remunerando-os dignamente.


Todos os presentes estavam com os olhos e ouvidos presos no discurso do novo vereador, porque o que ele estava falando não era nenhum absurdo. Era a pura realidade da cidade. Passados esses itens das necessidades do município, ele entrou nos assuntos relacionados a questões sociais e aí ele mudou um pouco o tom, sem perder a compostura, sempre usando linguajar adequado, porém compreensível para que todos pudessem entendê-lo.


Começou dizendo que a Prefeitura precisaria urgentemente dotar o município com um número maior de creches para que as mães que trabalhavam fora de casa pudessem ir para seus empregos mais tranquilas sabendo que suas crianças estariam bem protegidas em ambientes saudáveis  e assistidas por pessoas treinadas e capacitadas.


Providenciar a instalação de espaços culturais e esportivos e bibliotecas abastecidas de bons livros. Dotar as escolas com ensino de informática, música, teatro e outras artes, proporcionando oportunidades de inclusão social às crianças e jovens que estavam com seus futuros ameaçados em virtude das condições precárias em que viviam.


Ao final de seu discurso, conclamou todos os seus colegas, independentemente de partido, a abraçarem essas ideias transformando-as em projetos de lei e lutassem para que sua implantação se concretizasse. Todos o aplaudiram de pé por mais de um minuto a tal ponto que causou muita emoção aos presentes.


Jaque transformou seu cargo de vereador num sacerdócio, trabalhando dia e noite todos os dias, inclusive nos finais de semana. Percorria a cidade de ponta a ponta, sempre usando o transporte público e muitas vezes sua bicicleta, com o objetivo de colher as necessidades das populações mais desassistidas e também arregimentar pessoas que o ajudassem a lutar por essas causas.


Na Câmara, Jaque usou muito de seu tempo em conversas de convencimento aos seus colegas para que abraçassem essas ideias. Fazia questão de ressaltar que os benefícios do sucesso desses projetos não seriam destinados a ele e sim a todas aquelas pessoas menos favorecidas que viviam em condições precárias.


Apesar desse belo trabalho de Jaque, ele começou a incomodar alguns grupos obscuros que a cidade praticamente não conhecia, pois essas pessoas viviam nas sombras, sempre planejando algo que apenas as beneficiassem. Apesar dos projetos de Jaque atenderem um universo muito grande de pessoas, estariam reduzindo o lucro desses sanguessugas do dinheiro público.


Certo dia, Jaque estava trabalhando em seu gabinete na Câmara e ficou até depois de meia noite.  Antes de sair, telefonou para sua mãe avisando que já estava indo para casa. Tomou um taxi que o deixou na porta de sua casa e quando ainda estava pegando a chave no bolso, dois homens sobre uma moto pararam em frente e o que estava sentado no banco de trás, usando uma metralhadora, desferiu diversos tiros na costa de Jaque e partiram em disparada. O vereador não teve nem tempo de se virar para ver o que estava acontecendo e tombou ali mesmo, sem vida.

           

No dia seguinte, a notícia dessa tragédia deixou a cidade em choque. Parecia que a população havia emudecido. Via-se muita gente em prantos pelas esquinas. O medo e o pavor se espalhou pela cidade como rastilho de pólvora. As perguntas que todos faziam: “Por que mataram o vereador Jaque?” “Quem mandou matar o Jaque?” As respostas, nunca chegaram.

           

O funeral do vereador foi um alvoroço. A cidade inteira se movimentou, ao ponto de o Poder público precisar intervir para organizar os movimentos de forma a não causar nenhum dano às pessoas. Primeiro foi organizado visitação pública ao caixão de Jaque, no salão principal da Câmara dos Vereadores, para que seus admiradores vissem seu corpo pela última vez. A fila era enorme e isso durou mais de 24 horas. Depois o féretro seguiu em carro de bombeiros para o cemitério acompanhado por uma multidão.


A morte de Jaque sensibilizou profundamente os vereadores ao ponto de todos, sem exceção, abraçarem as ideias e projetos do colega que foi brutalmente e covardemente assassinado. Todos os projetos que o vereador Jackson Silva Costa deixou iniciados, foram concluídos por seus colegas e transformados em lei. E as ideias foram devidamente implantadas. Hoje o município que Jaque, por imposição do destino, foi obrigado a abraçar, se tornou a cidade com o maior IDH-Índice de Desenvolvimento Humano, do país.



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