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A Independência de Jandira

Ao atingir a puberdade, comecei a sentir sensações estranhas a respeito de minha sexualidade. Percebi que tinha atração por mulheres, enquanto os homens me eram completamente indiferentes. Esse desinteresse pelo sexo masculino chegava ao ponto de sentir aversão.


Certa vez, na escola, na hora do recreio, num lugar afastado, estava conversando com um colega da minha turma e em determinado momento, por impulso, o beijei na boca. Aquilo deixou o amigo desnorteado, sem entender nada, mas gostou do beijo e tentou me agarrar para outro, mas sai correndo deixando o rapaz confuso. O gosto do beijo deu-me tanto nojo que corri em direção ao banheiro para vomitar. Nunca confidenciei isso com ninguém, exceto para minha única amiga, Ana, com quem trocava segredos.


Além de Ana, não tinha ninguém com quem conversar sobre este beijo, nem sobre essa nova fase da vida que estava despontando em mim. Como Ana tinha a mesma idade que eu, as experiências as nossas experiências de vida eram as mesmas. Em casa, não tinha intimidades com meus pais. Não havia diálogo para nada. Tinha que me virar sozinha e isso eu sabia fazer muito bem. Sempre fui uma garota responsável. Quando estava com meus treze para quatorze anos, meu pai abriu uma conta no banco em meu nome e mensalmente depositava um certo valor para eu usar como quisesse. Tinha até cartão de crédito.


Gostava de ler muito. Ganhei de minha tia um Kindle e frequentemente comprava ebooks na Amazon. Era uma devoradora de livros. Estava o tempo todo com meu leitor de livros digitais. Lia sobre todos os assuntos que me despertavam atenção e isso me proporcionava bagagem suficiente para discutir a respeito de diversos temas que chegavam a mim. Levava a vida reservadamente, sem vaidade, sem aqueles arroubos típicos da adolescência e juventude. Concluí o ensino médio com muito sucesso, mas sem chamar atenção pelas excelentes notas que obtive em todas as disciplinas. Era muito estudiosa e já demonstrava meu tino para a política, não como ativista, mas como analista. Tinha uma sagacidade para o cenário político de cada momento e logo apresentava um comentário ou texto sobre o assunto. Fui para a Universidade Federal cursar Ciências Sociais e concentrei-me em Ciências Políticas. Certa vez, ao apresentar um texto de um trabalho rotineiro do curso, sobre política, o professor, que também atuava num jornal de grande circulação como jornalista, me perguntou se eu permitiria que aquele texto fosse publicado no jornal. Concordei e a matéria saiu em forma de coluna, na página 2 da edição de domingo. Foi um sucesso estrondoso. Ao ponto de o chefe de redação me oferecer a oportunidade de publicar semanalmente uma coluna sobre política, na edição de domingo, na segunda página. Fiquei um pouco assustada, mas não me deixei deslumbrar com o convite e respondi com naturalidade que concordaria. Foi meu primeiro emprego remunerado, ainda como estudante universitária.


A vida foi escorregando no tempo. Formei-me em Ciências Sociais, especializei-me em Ciências Políticas, fiz o mestrado, em seguida o doutorado e por fim o pós-doutorado. Assumi um cargo de professora na mesma Universidade onde fiz o curso de graduação e continuei como colunista do jornal tornando-me famosa, tanto que muitas vezes era solicitada por alguma emissora de TV a tecer comentários sobre algum fato político do momento. Era lida com muita ansiedade pelos leitores do jornal, porque minhas análises eram excelentes, modéstia a parte. A explicação para o teor elevado de meus textos é simplesmente porque nunca fui partidária, desprovida de qualquer emoção que contaminasse minhas ideias políticas. Isso me permitia transitar por todos os vieses da política sempre com o olhar crítico-construtivo, de tal forma, que todos os políticos gostavam de mim e não retrucavam quando se sentiam afetados por algum comentário que lhe era desfavorável, porque não tinham argumentos para contrapor.


Me chamo Jandira e aprendi a lidar muito bem com minha preferência pelo sexo feminino. Era uma mulher livre, abnegada, não me envolvia com grupo nenhum e só tinha uma amiga verdadeira com quem conversava sobre tudo. Falava com a Ana diariamente. As vezes presencialmente outras pelo computador, através desses aplicativos de conversa.


Logo que adquiri independência financeira, sai de casa e fui morar sozinha. Quer dizer, sozinha não, mas na companhia de uma gata Angorá que dividia os ambientes da casa comigo. Esse era o único animal que gostava. A gata vivia numa mordomia que muitos seres humanos não dispunham. Era levada com frequência ao salão de beleza de um pet shop para tomar banho, cuidar dos pelos e das unhas. Ia religiosamente ao veterinário para fazer os exames preventivos de saúde, e só comia ração da melhor qualidade. Nós duas dormíamos no mesmo quarto, mas não na mesma cama. Mandei fazer uma cama de dimensões proporcionais ao tamanho da gata que logo se apegou ao móvel. Tinha colchão, lençol e travesseiro. Quando eu levava alguma namorada ao apartamento para uma noite de amor, a gata, muito discretamente, saia do quarto e ia dormir no sofá. Só retornava para sua cama depois que a visita fosse embora.


Em determinada oportunidade, estava conversando com uma ex-colega de colégio que, sabendo da minha homossexualidade, perguntou:


- Por que você não se transforma em homem? Hoje isso já está tão comum.

- Porque sou mulher. E, sem falsa modéstia, uma mulher bonita e gostosa. A única diferença de mim para você é que eu gosto de fazer sexo com mulheres. Qual o problema nisso?


Realmente, eu era uma mulher muito bonita. Tinha consciência de que meus 1,80 m de altura era composto de um corpo muito bem delineado e com curvas uniformes que chamava atenção de qualquer pessoa. Rosto ovalado, sobrancelhas espessas, nariz no tamanho certo, boca grande, mas proporcional ao tamanho do rosto e lábios carnudos que se destacavam porque os mantinha sempre pintados com batom vermelho que proporcionava um belo contraste com minha pele negra. Os olhos na cor de bronze, graúdos sem parecer arregalados, estavam sempre atentos a tudo como se estivessem sempre em posição de vigilância.  O principal problema que toda essa beleza me causava, é que abalava o coração de muitos homens que se apaixonavam rapidamente por mim. Um colega que trabalhava no mesmo jornal que eu, certa vez, me fez uma linda declaração de amor que derrubaria qualquer mulher. Depois de escutá-lo, lhe disse:


– Nosso relacionamento não pode dar certo porque eu também gosto de mulher. O rapaz tomou um susto porque não sabia nada sobre mim. Nos tornamos bons amigos.


Quando cheguei aos quarenta anos, comecei a perceber algum incômodo com a solidão. A companhia da gata já não era suficiente. Eu precisava da companhia permanente de alguém em quem confiasse e pudesse discutir os assuntos da vida e do dia a dia. Quando fui ao consultório da ginecologista fazer os exames preventivos, ela observou no meu comportamento uma certa tensão, pois estava muito calada e pensativa. Perguntou-me o que estava se passando, mas desconversei e preferi não falar nada. Mesmo assim, a doutora insistiu:


– Tudo bem que você não queira me falar nada, mas vou lhe indicar uma terapeuta para o caso de precisar conversar sobre algum problema, que porventura esteja passando.


Anotei o contato e, conversando com Ana sobre a consulta com a ginecologista e o que ela percebeu, minha amiga, ciente do que estava acontecendo comigo, concordou plenamente com médica e reforçou a ideia de procurar essa terapeuta. Disse que era uma profissional competente e com boas referências na cidade.


Depois de muitos dias pensando sobre essa questão de ir ou não, até a terapeuta, resolvi marcar uma consulta. No primeiro encontro sai deslumbrada com a profissional. Confidenciei com Ana o quanto gostei da consulta, porque fiquei bem mais aliviada das tensões depois da primeira conversa e deixei agendada outro encontro.


O tratamento ao qual estava me submetendo com a terapeuta mostrou bons resultados que foram logo percebidos por Ana. Antes de fazer terapia, eu era muito exigente nos meus relacionamentos de qualquer natureza. Tinha que ser inteligente, com boa aparência, de bom papo e outras qualidades, ou seja, um ser perfeito. Isso me causava muita aflição.


Certo dia, fui a um coquetel numa galeria de artes onde estava acontecendo a exposição dos quadros de uma artista nova que não conhecia. No meio dos visitantes, com uma taça de champanhe na mão, estava olhando um determinado quadro quando uma moça se aproximou de mim e perguntou:


– O que acha deste quadro?


Virei-me para ela e não conseguiu disfarçar o deslumbramento que tive com a mulher. Era uma moça da minha altura, bem-vestida, de gestos finos e educados. Como eu sabia um pouco de arte, não me intimidei com a pergunta e discorri sobre a pintura com uma desenvoltura que impressionou a interlocutora. Minha opinião foi um gancho para aprofundarmos mais a conversa sobre artes. Até que em determinado momento, descobri que estava falando com a artista, Daniele, dona da exposição. Isso deixou-me maravilhada. Ela, por sua vez, já estava “caída de quatro” por mim. Isso era visível. O papo rolou até o fim da exposição. Saímos e foram a um restaurante jantar. Ao final do encontro, convidei Daniele para jantar na minha casa, no dia seguinte.


Esse jantar passou a ser uma nova experiência de vida para mim. A química entre eu e Daniele foi algo inexplicável. A partir daquele dia, começamos a viver juntas e assim nossas vidas seguiram seu curso.



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