Por Baixo da Porta
- Luc Palacios
- 15 de mai.
- 8 min de leitura
Mantenha-se na área segura e periférica quando começar. Equipe-se o máximo possível, corra em zigue-zague, abaixe-se, mire e atire sem parar. Não esqueça: Fique vivo. Talvez, uma equipe possa ser de grande ajuda aqui nessa arena. Preciso sim de alguém pra me dar retaguarda e, quem sabe, conseguirmos chegar aos melhores do país.
— ATIRA, ATIRA, ATIRA, seu projeto de demônio.
— À esquerda, VAIIII... Oh! Seus cruzamentos de Sasuke com Orochimaru. Eu disse esquerda, ESQUERDA.
É impossível jogar com esses que não prestam atenção. Sem lutar, não vamos chegar nunca à vitória. Vida longa aos BADASS do Free Fire. De um lado a outro da cama, travesseiro nas mãos, nos pés, pés para cima, pés para baixo, estica e encolhe, squash and stretch. Quarentena obrigatória é para Nutellas, eu sou raiz, tá ligado? Vamo lá, hora de mais uma batalha.
— Mano, a Elisa chamô aqui querenu jogá. Deixa ela entrá?
— Oh Gabriel, mas o que uma garota vai fazê aqui? Não é o lugar dela. Manda ela ir fazê compras e presta atenção porque acho que tem alguém por aí.
— Mas mano, ela...
— Foda-se ela. Vai ali naquela casa que deve tê alguma arma melhor pra você.
Foi uma discussão desnecessária, eu sei. O Gabriel já deveria saber que não ia rolar. Enfim, minutos depois comecei a ouvir uns barulhos estranhos. Batidas por todo lado. Tive que tirar o fone para entender o que estava acontecendo. Foi aí que percebi que uma voz feminina gritava ensurdecedoramente (que palavra é essa, que merda kkk). Não faço a mínima ideia, mas pouco me importa o que estava acontecendo. Se fez merda, ela que lute, né não? Fora que começaram a atirar na gente. Não posso morrer agora, tenho uma meta para alcançar.
— Ele deve está aqui por perto Gabriel, ouvi os tiros e tals, peguei mais armas aqui e veio junto um colar dourado, que inútil. Vou guardar pra dá pra Elisa hehe.
— HEY MANO ELE TÁ AQUI, AHHH.
— PORRA GABRIEL, não acredito que tu morreu. Peguei ele. Eu tenho que fazê tudo aqui nessa merda.
Vocês não têm ideia do pulo que eu dei. Do nada um estrondo na porta que tremeu tudo, a parede toda e a cama. Meu coração saiu da boca, escorregou no chão e engatinhou para baixo do guarda-roupa para se esconder. O pior de tudo é que depois ficou aquele silêncio de filme de terror com aquela musiquinha aguda de violino. Tive que olhar para a porta e deixar o celular de lado. Foda-se Free Fire, eu só quero saber o que aconteceu. Além disso, era possível ver uma luz ensanguentada esgueirando-se por baixo da porta. Isso não é de Deus não.
Tá, vamos lá que coragem a gente não tem, mas curiosidade... Tentar ouvir na porta nem adianta, pois tá o maior silêncio. Já o buraco da fechadura está tampado. Resta deitar para conseguir ver algo. Primeiro um joelho, depois o outro, mãos no chão e...
— AHHHHHH!
Por favor, diga que não é verdade, que não vi o que vi. O que? Não quero nem pensar, quanto mais descrever. Não existem palavras para aquilo. Era...
Era... Sei lá, horrível? Frescura? Tenta você olhar por debaixo da sua porta e ver um cadáver de uma mulher toda machucada, com olhos frios e doloridos, o sangue escorrendo lavando o chão. No dia que tu ver, me diz a frescura que é.
Eu... Eu não... aquela visão tão gélida parecia pedir socorro, triste. Como tirar essa imagem da cabeça? Diga-me, por favor. Ela estava ali, caída com seu corpo oposto ao meu, eu só conseguia ver bem seu rosto. Não vou parar de andar de um lado para o outro, eu preciso tirar essa imagem da minha cabeça, ok?
Quer saber, não é possível. Deve ser coisa da minha cabeça. Eu não quero olhar novamente, mas preciso ter certeza. Força, um, dois, três. Viu?
Nenhuma mulher morta na minha porta. Na verdade, está tudo meio estranho, porque não havia grama em frente ao meu quarto antes, mas agora, vejo sombras tão engraçadas. Aquela ali no chão parece uma girafa sem cabeça e bem fina, aquela outra parece uma mula com cabeça e braços virados para trás. Aquela ali parece... parece uma menina com tranças.
Tive que coçar os olhos e tentar quase fechá-los para conseguir enxergar o que estava acontecendo de verdade. Tá tirano cara. Cara, tem uma cachoeira marrom e que... sente esse cheiro, parece chocolate. Só um lugar no universo tem uma cachoeira de chocolate. Lembra qual é? Vai, tenta adivinhar. Tá fervendo. Isso mesmo "A fantástica fábrica de chocolate do Willy Wonka", é óbvio. E olha essas Oompa Loompas trabalhando e fazendo os melhores chocolates do universo.
Ei! Olha lá. Aquele deve ser o Willy Wonka vindo junto com uma Oompa Loompa. Que homem incrível, conseguiu criar uma fábrica como ninguém. Ahhh, que cheiro bom, está sentindo? Calma, calma, ele parece que está
dizendo algo. Silêncio.
— Atenção minhas queridas e amadas Oompa Loompas. Temos uma nova amiga que acabou de chegar comigo dessa viagem magnífica. Durante um mês busquei encontrar os melhores cacaus do mundo. A ilha de onde vieram era o lugar para se conseguir o que queria. Em uma noite, cansado, depois de ter desbravado o dia todo aquela densa e assustadora floresta, cheia de perigosas criaturas, e não achado nada. Ouvi um grito de desespero. Eu, como um bom homem levantei, peguei meu facão e corri em direção àquele grito. Eu a vi ali, caída, frágil, indefesa, frente a uma fera horripilante. Pulei entre ela e a Pantera Negra. O bicho veio para cima de mim, eu o derrubei, mas ele cravou com suas unhas um arranhão em meu pescoço. Eu sentia aquele líquido quente escorrer, mas eu não podia desistir. Foi então que levantei meu facão e o acertei na mesma pata que me feriu. Fugiu deixando eu e minha indefesa mulher ali desolados. Mesmo assim, a peguei no colo e a levei para a barraca sã e salva sem nenhum arranhão.
Você viu a reação das Oompa Loompas? Olha como elas aplaudem? Que exemplo de homem, um dia serei assim. Ele não terminou, ainda está falando.
— Ela então decidiu vir para a fábrica comigo, deixando sua família e amigos em devoção a mim por tê-la salvado. E cá estamos nós. Tratem-na bem e mostrem como funciona as regras da fábrica.
Olha que gentileza, ele beijou a testa dela, que respeito, e está cochichando algo. O que será que ele está falando? Sem dúvida ela não o merece. Olha a cara dela. Olhando para todas como se fossem inimigas. O olhar dela, única coisa que consegui prestar atenção antes de me distanciar.
Sei lá era um olhar tão triste. sabe quando você olha no olho de alguém e
parece que essa pessoa vai chorar, mas não cai nenhuma lágrima? Que mundo
incrível. Se eu pudesse morava nessa fábrica.
Vou ter que olhar de novo hehe. Eu devo estar enlouquecendo. Não é possível. Até agora era a fábrica de chocolate, mas tá tudo meio embaçado, cinza. Pera aí, tá começando a ficar mais nítido.
— Primrose Everdeen!
Parece uma multidão enfileirada. Aquilo é um palco?
— Primrose?
Aquela moça de cabelos...
— PRIM, PRIM. EU ME OFEREÇO. EU ME OFEREÇO COMO TRIBUTO!
Quê? Jogos Vorazes? Como assim? Aquela não é a Katniss, está muito diferente, jeito, cabelos, tudo. Eu devo estar em um pesadelo.
— Como ousa perturbar e enfrentar a Capital? Pacificadores?
Calma, como assim. Gente, ela só está tentando salvar a irmã. A história não é assim. Tem alguma coisa errada. ALGUÉM AJUDE. Sete homens contra uma? É muita gente. Para, isso é injusto.
— SOCORRO!
Alguém faça alguma coisa. Estão levando ela para o centro da praça e a prendendo em um tronco. Como todos conseguem ficar olhando com essa cara de nojo para ela. Não, está errado. Rasgaram a blusa dela. Ei, não, ele está pegando um chicote? Os sete? Olha a dor dela, aquelas cordas arranhando a pele dela. O sangue escorrendo. Não consigo olhar. Por que as calçadas, as ruas, o palco, os prédios, a prefeitura, tudo está manchado de vermelho? Ela está olhando para mim. Um olhar tão triste. Sabe quando você olha no olho de alguém e parece que essa pessoa vai chorar e algumas lágrimas caem, mas nenhum grito, nenhuma ajuda. Consegue ouvir o barulho do chicote?
Não dá, é sério. Não consigo mais olhar. Chega, minha imaginação já foi longe demais. Prefiro meu Free Fire do que ficar agachado em uma porta para ver essas imagens idiotas que minha cabeça cria. Quantas cenas vão continuar? Sempre diferentes? Isso pode durar a eternidade. Será que ela vai morrer? Será...? Ela não fez nada, imagina que defender sua irmã torna-se um crime. Onde já se viu. Falar algo torna-se passível de ir para o tronco. Não poderia ficar nas imagens da fábrica?
Vamos de Spotify para ver se me livro dessa loucura. "Pain! You made a, you made me a believer, believer".
Eu preciso saber o que vai acontecer, merda! Não, de novo não. Mais uma história sem final. Quer ver que se eu parar de olhar e voltar, vai mudar a cena de novo. Olha só. A mesma cena? Estranho. Vou tentar de novo. Uma luz ensanguentada. Vou contar até três e voltar e a cena vai ter mudado. Um, dois, três. A mesma. O que eu vejo? Bem, é um restaurante, tem um casal jantando, na mesa algumas velas que emanam a luz que inunda esse vão da porta. Não sei que tipo de restaurante é, mas o papel de parede é bem vermelho, tem um aquário, algumas coisas douradas. É bonito e romântico e a mesa redonda.
Parece a mesma mulher, Oompa Loompa e Katniss, ela tá coçando as costas. Ela parece bem feliz porque os dois estão rindo. Olha como ele olha para ela, como se estivesse arrependido de algo, mas ainda como se a amasse tanto. Como eu sei? Ah, vai dizer que tu não percebe as coisas quando as pessoas te olham? Tem até o ditado que mostra que os olhos são as janelas da alma, algo assim. Ela está tímida, eu acho, agora com as mãos unidas inquietas, cabeça meio baixa, sorrisos bem sutis. Eu não consigo ouvir o que eles estão conversando.
Ele está colocando a mão dentro paletó e está tirando algo de dentro. É uma caixa meio quadrada de veludo vinho, que lindo, mas grande demais para ser uma aliança. Ele entrega a ela, ela olha com receio. Ele colocou a mão no queixo dela e levantou o rosto dela. Isso é que é um homem romântico. Ele está falando "Eu te amo", sem dúvida, a boca mexe para essas palavras. Ela vai abrir. Uau, é um colar dourado. Silêncio, ele fez um gesto e ela levantou, virou de costas. Ele vai colocar nela. Nível hard do amor.
Ele tá colocando, olha ela passando a mão no colar. O pescoço dela vai ficar rico e... Que merda é essa. Ei para, você vai enforcá-la. Ei, cara? Ela está se debatendo toda. Merda, agora a mesa caiu na frente e não dá para ver.
— EIIII!
Ele vai matá-la, eu preciso fazer algo. Por que a parede e a cama, tudo, está tremendo? Não era só a minha imaginação? Barulho das coisas batendo e quebrando. Ninguém faz nada?
—EIIII, ALGUÉM? SOCORROOOO, ELE VAI MATÁ-LA.
Ninguém responde e nessa merda de quarto não tenho uma janela para tentar pedir ajuda. A porta não abre, esmurrá-la também não adianta. Bater com as coisas na parede não faz sentido algum. Só consigo ver a mesa ao olhar e ouvir os estrondos extremamente altos. E agora? O que eu devo fazer? Não tenho como ajudá-la.
AHHHHHHH Que susto, que batida foi essa na porta? Silêncio ensurdecedor. E agora?
Eu já esperava isso aqui. Olhar por baixo da porta e encontrar o corpo. Estou de frente a ele e é possível ver a marca funda do colar no pescoço. As roupas rasgadas, seu corpo cheio de hematomas, os olhos frios e doloridos, o sangue escorrendo lavando o chão. Corpo estirado. Não fale comigo agora. Prefiro mil vezes olhar para o teto do que voltar a olhar por baixo da porta. Você tem ideia? Chorando? Como não?
Cara, eu pensei que ela era a culpada em cada parte que vi por essa porta. Sabe? Meio que eu humilhei a Elisa, foi muito errado aquilo. Eu deveria mesmo... pedir desculpas a ela. Vou fazer isso agora. Mas o que eu escrevo? O que eu digo?
— Oi!
— Que que tu quer?
— ...
O que eu falo? Só pedir desculpas? Tão simples? Quer saber? Vou pensar e daqui a pouco eu falo com ela. Os caras estão aqui chamando para uma partida. Vou jogar, assim relaxo a cabeça e consigo pensar melhor em como pedir desculpas.
— Porra Gabriel, de novo tu morreu?

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