O Último Suspiro
- Edu Mussi

- há 5 dias
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Não sei por quê estou nesse mundo, aliás, nem era para eu ter nascido. Nasci
de teimosa que sou. Aurora desabafou para sua amiga, Josefa, num daqueles dias em que a tristeza vem igual a uma avalanche de terra.
— O que está com você, Aurora? Nunca ouvi você falar desse jeito.
— Ah, Josefa, querida, para você entender isso, preciso lhe relatar o que minha
mãe confidenciou-me em seu leito de morte.
— Pois então conte, porque você me deixou preocupada com essas palavras
dramáticas. Isso não é um bom sinal.
— Tudo bem, mas sente, porque a história não é tão curta.
— Antes de você iniciar, me diga como está a situação lá na sua casa depois
da morte de dona Natália?
— Aparentemente estamos bem. Minha mãe partiu em paz e papai recolheu-se
em seus pensamentos e está quieto no seu canto.
— Está assim por causa do luto, Aurora. Você precisa ter paciência com Seu
Carlos.
— Não é bem assim. É porque não tem mais a mamãe para encher o saco
dele, mas percebo que está sentindo falta disso.
— E seu relacionamento com ele?
— Nos falamos pouco. Quase não paro em casa e quando ele tem oportunidade de se encontrar comigo, descarrega a rabugice dele sobre mim.
— Sim. Voltemos ao seu desabafo. O que está acontecendo?
— O que vou lhe contar são relatos de minha mãe algumas horas antes dela morrer. Nesse dia, ficamos só nos duas no quarto e ela teve a serenidade e tempo para me contar toda essa história, antes de partir e agora compartilho com você.
***
Sou filha única de um casal conservador, mas não com aquele conservadorismo de extrema-direita que é favorável a ditadura, pena de morte e outras violências. O conservadorismo de meu pai era de um machismos do século dezenove, onde as mulheres não precisariam estudar, bastava aprender a ler e escrever. Elas deveriam apenas aprender a cozinhar, bordar, costurar, lavar roupa, limpar e arrumar a casa e serem preparadas para cuidar de seus maridos. Não tive irmã ou irmão. Quando perguntava à minha mãe o motivo de eu ser filha única, ela me respondia simplesmente que o útero dela havia secado.
O conservadorismo de minha mãe, se assemelhava bastante com o de meu
pai, a diferença é que no íntimo ela sentia o peso dessas responsabilidades, ou melhor, desse escravismo imposto pelos homens, só que não tinha a coragem de externar seus sentimentos. Consentia com seu silêncio.
Aliado a isso, era uma católica fervorosa, onde acreditava que o padre realmente conversava privadamente com Deus e portanto, ele tinha o poder de julgar, aplicar a penitência e perdoar. As mulheres teriam que se casar virgem, vestidas de branco, véu e grinalda, sob a benção de um padre que por sua vez já havia obtido a autorização de Deus.
Eu, desde criança, sempre fui uma filha rebelde. Acho que nasci na família errada, ou me enganei ao escolher essa família para nascer. Quando ainda criança, na minha primeira comunhão, já fiquei meio arredia com aquilo. Mas, pela idade, não poderia fazer nada diferente do que me impunham, exceto na hora da “confissão dos pecados” que antecediam à cerimônia.
Ajoelhei-me no confessionário e o padre falou algumas palavras que não entendi e fiquei calada por um longo período que, para mim, foi uma eternidade. E o padre me perguntando quais eram meus pecados. Não respondia, porque nem sabia direito o que era pecado. Acho que ele percebeu, me abençoou e mandou eu me retirar dali.
Já um pouco mais crescida, em vez de brincar com bonecas, eu adorava jogar
bola com os moleques da minha rua, mas quase sempre era escorraçada – “aquilo não era brincadeira de menina” – diziam os garotos, demonstrando o machismo que estava entranhado neles, já naquela idade.
Quando cheguei na adolescência, quase adulta, desejava cursar medicina. Sonhava em ser médica famosa para atender a todos que necessitassem dos meus
cuidados. Ficou só na ilusão. Na minha cidade não havia faculdade e, como não tinha autonomia para sair de casa e viajar para outro lugar em busca do meu sonho, fui estudar numa escola normalista. Ao concluir o curso, tornei-me professora.
Já estava me transformando numa moça bonita, modéstia à parte, e a pressão dos meus pais para arranjar logo um namorado, depois noivar e se casar aumentava a cada dia. Eu respondia: “não quero me casar”. Meu pai ficava uma fera. Às vezes
arranjava um namoradinho, mas era tudo escondido e, quando papai descobria, nossa casa virava um clima de guerra. Diante disso, os eventuais pretendentes que
apareciam para namorar, logo sumiam com medo do meu pai. Ele só permitia alguém que conhecesse e tivesse nome tradicional.
Certa vez, ele conheceu o filho de um sujeito muito amigo dele, e simpatizou logo com o rapaz. Imediatamente pensou em torna-lo meu marido. Convidou-o para almoçar em casa, apresentou-me com exagerado ênfase:
— Olhe minha filha, este é o Carlos, filho de um grande amigo.
— Muito prazer, Natália. — Respondi com educação, sem entusiasmo.
— Rapaz honesto, trabalhador. Continuou meu pai, com seus elogios. De fato o rapaz era bonito, alto, falava grosso e muito educado. Simpatizei com ele. Mas só simpatizei, não tive nenhuma atração ou estímulo para namorar e muito menos para me casar. Por outro lado, o rapaz ficou atraído por mim e começou a me encher de gentilezas. Ia me visitar todos os dias levando buquês de flores e outros agrados.
A pressão sobre mim aumentou. De um lado eram meus pais e do outro a do rapaz e mais sua família para ajudar. Aquela situação vinha me aborrecendo, tornando minha vida insuportável. Diante disso, cedi ao assédio e comecei a namorar com o Carlos. E tudo aconteceu muito rápido. Noivamos, como ditava a regra e logo em seguida nos casamos. Sem ter onde morar, fixamos residência na casa de meus pais, pois era um imóvel muito grande, de forma que não causou nenhum transtorno para ninguém. O problema, era que eu não tinha autonomia para mandar na minha casa, porém aquela chateação do início desapareceu. Estava vivendo em paz.
Quando eu dizia que não queria me casar, não falava aquilo por birra, pois não tenho nada contra o casamento, mas eu desejava sinceramente, em não casar e muito menos ter filhos. Não queria que ninguém dependesse de mim. Meus planos íntimos eram de ganhar o mundo, viajar, estudar, ter minha vida independente e morar sozinha.
Entretanto, isso nada aconteceu. Já estava casada. Essa era a realidade que não poderia e nem teria forças para mudar.
O tempo foi passando e um dia descobri que estava grávida. Apesar do casamento ter contrariado todos os meus sonhos, não chegou a afetar minha vida, pois logo me acostumei. Trabalhava o dia inteiro dando aulas nas escolas, em casa corrigindo provas, preparando aulas, e outras atividades escolares. Mantinha minha mente ocupada e não ficava pensando no que eu havia deixado para trás.
Contudo, quando soube que dentro de mim havia uma nova pessoa, uma nova vida, aí eu fiquei desesperada. Não sabia o que fazer e muito menos ter com quem conversar. Nem adiantaria procurar minha mãe, pois já sabia de antemão qual seria sua reação. Disfarcei muito bem meu desespero e não contei para ninguém, exceto a uma amiga íntima, a Helena. Nos conhecíamos desde criança.
— Helena, querida, estou grávida. Estou desesperada. O que faço?
— Desesperada por quê, minha amiga? Você será uma linda mãe.
— Não brinque Helena. É sério. Eu não queria essa criança. Comecei a lagrimar.
Helena vendo que eu realmente estava transtornada, me perguntou:
— Você não quer ter essa criança, Natália? Você já pensou nisso? Tem certeza?
— Sim, minha amiga. Não quero. Não nasci para ser mãe. Não tenho nenhum talento para ser mãe.
— Vou te ajudar. Contrariada, mas vou te ajudar porque me dói muito vendo você nesse estado.
No dia seguinte, Helena trouxe um frasco com um líquido que não sei o que era e disse-me que aquilo era um abortivo. Ela havia conseguida com uma senhora curandeira lá do bairro onde ela morava. Eu deveria tomar o conteúdo do frasco de uma vez só, à noite antes de dormir. Pela manhã o feto seria expelido sem eu perceber. Iria sair um pouco de sangue, como se fosse menstruação, mas que eu não
ficasse preocupada que depois passaria.
Levei o frasco para casa e fiz exatamente o que Helena me recomendou: à noite antes de dormir, tomei todo o conteúdo do frasco e fui deitar-me. Trinta minutos depois comecei a sentir um mal-estar que se agravava com o passar dos minutos. O enjoo foi se intensificando, comecei a suar frio e veio a ânsia de vômito. Não aguentei, corri para o banheiro e vomitei.
Fiquei a noite inteira sem dormir e não podia me queixar ao Carlos, pois ele não sabia de nada do que estava se passando comigo. Levantei-me da cama pela manhã bastante fraca, pálida e muito desidratada em consequência das vezes que fui ao banheiro vomitar. Nesse dia não fui dar aula. Fiquei o dia inteiro em casa e minha mãe não percebeu nada, apenas comentou sobre minha palidez, dizendo que eu deveria pegar um pouco mais de sol.
Não ocorreu nada do que a curandeira havia dito. Não sangrei e não houve menstruação, apenas o transtorno estomacal que passou no final do dia. No dia seguinte já estava bem.
Quando me encontrei com a Helena, ela me encheu de perguntas:
— Como você está? Tomou o remédio? Aconteceu o que a curandeira disse?
— Nada Helena. Não aconteceu nada, exceto o mal-estar no estômago.
Vomitei várias vezes e passei a noite em claro me sentindo muito mal. E no dia seguinte nem fui trabalhar, pois estava muito indisposta e desidratada, porém à noite já estava bem. Concluo, com isso, que não abortei.
— Vou falar para a curandeira, talvez ela possa lhe ajudar.
— Não faça isso. Decidi que vou ter essa criança. E seja o que Deus quiser.
— Tem certeza, Natália? Não vou insistir com mais nada, pois você já é bem “grandinha” e sabe o que está fazendo.
— Pois é, sei o que estou fazendo. De qualquer forma, muito obrigada pela sua preocupação em me ajudar.
Nesse dia, à noite, comuniquei a todos lá em casa da minha gravidez. Carlos ficou feliz, mas do jeito dele, caladão como sempre. Só disse que gostaria que fosse um menino. Meus pais ficaram radiantes pelo neto ou neta que ganhariam. Não falavam outra coisa. Como naquele tempo não havia a tecnologia de vermos o sexo do bebê ainda no ventre, o seu nascimento foi uma surpresa. Não só o Carlos, mas os avós queriam um menino, mas veio você, minha linda Aurora.
Agora posso partir aliviada desse peso na consciência, pelo fato de ter tentado lhe matar, mesmo sem antes de você ter nascido. Peço-lhe perdão, minha filha, e fique certa de que sempre tive muito orgulho de você e a amarei para sempre.
Dito isso, minha mãe virou o rosto como se fosse olhar para o teto, fechou os olhos e deu o último suspiro.





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