Fonte da imagem: Freepik
É hora do almoço. A TV está ligada, como na maioria dos lares. As notícias ruins são vomitadas enquanto o casal idoso come, em silêncio. A estratégia de ligar a TV veio depois de poucos anos de casados, no impasse em ter de falar algo no silêncio inoportuno.
O diretor geral da ONS ... falou sobre a situação de Gaza, em coletiva, agora à pouco... — a voz da jornalista traz a oportunidade de conversa.
— Essa situação está terrível! Imagino a fome que as pessoas estão passando, enquanto estamos comendo calmamente em nossa casa — ela diz, se aproximando da varanda, para fechar o vidro. — Tá se armando chuva, está ventando forte.
— Você mudou o tempero da comida? — ele pergunta, confirmando os comentários dela, com a cabeça, e continuando a comer.
— Sim, estou tentando sermos mais saudáveis — responde ela, escondendo a mudança de local onde pede a marmita, artifício usado há anos, sem ele notar.
— Mulher, pra que ser mais saudável, a essa altura da vida?
— Estamos velhos, mas continuamos vivos, querido — ela retruca, pensando, antes, no tom adequado para usar no “querido”.
... Ele pediu por corredores de segurança para que trabalhadores humanitários possam levar ajuda a quem precisa, e pela libertação de todos os reféns — o âncora se despede da jornalista que cobre a matéria, mudando de assunto para falar de política estrangeira.
Ela levanta da mesa, vai à varanda, enfrentando a ventania que dispersa pensamentos. Como faz sempre que sente a hora da guerrilha. — Por que continuamos a ouvir as notícias? — pensa, enquanto o som suave e estridente dos sinos de vento, na varanda, desarma as palavras, ultimamente engatilhadas com frequência.
— Mulher, já acabou de comer? Cadê a sobremesa? — ele a faz voltar ao cotidiano.
— Na geladeira — dispara ela, se movendo rumo à tv, para mudar de canal. Queria ouvir músicas alegres, dançar como faziam no início.
— Não muda de canal, estou ouvindo as notícias! — o diálogo com ele, o de sempre.
Lentamente, ela vai à área de serviço – onde tem passado a maior parte do seu tempo. Pega a vassoura mais pesada. Se dirige com calma até a TV. Descarrega suas balas no rosto do repórter, batendo a vassoura três, quatro, dez vezes. O marido pula da cadeira e cai, surpreendido pela cena, inédita em mais de vinte anos de casamento.
Em silêncio, ela volta à mesa, voltando a saborear a comida lentamente.
No apartamento vizinho, no som alto da tv, na novela, alguém comemora:
— Que a magia desse dia nunca perca o encanto.
Desafio #10 Descrevendo e Reinventando Áudios
Título: O DE SEMPRE
Comments