O que eu estava fazendo ali? no meio daquelas pessoas… eu nem gostava daquelas pessoas. Mas a tia Jandira cozinhava muito bem e era tão amável e gentil - não é fácil recusar um convite de alguém como a tia Jandira. Ela me chamou pro natal em família. O que eu diria? Tia Jandira é quem cuidou de mim quando eu era menino e minha mãe trabalhava o dia inteiro, acho que isso significa muito. Eu estava ali por causa disso, tenho que admitir, eu queria estar ali e ao menos agradar a tia Jandira.
Caramba! mas que gente chata. O tio Carlos já tava falando de política de novo, começou a falar um tanto de abobrinha, que todo mundo é sujo, que tudo é balela, era sempre a mesma conversa sem tirar nem pôr uma vírgula. Tio Carlos já foi vereador, o maldito ganhou e eu nem sei como, na verdade eu sei mas não entendo, talvez eu entenda mas não queira entender. Desde que foi vereador o clima familiar ficou uma merda. É claro que sou chato também, se não não estaria reclamando, mas reclamo pra mim mesmo, em silêncio. Tio Carlos faz do ouvido de todos um depósito de lixo. A pouco tempo chegou perto de mim e me perguntou se eu não achava que o governo tá uma merda. Disse que não sei. Na verdade não quero conversar com ele. Não sei bem o que responder. Não posso pensar muito nisso, me estresso. Tenho que pensar em coisas boas. No meu prato um pedaço de frango assado com cebola e batata, leitoa casquinha pururuca, uma farofa com banana frita e uva passa, arroz e vinagrete com abacaxi. Disso eu não podia reclamar, nadinha, nem pra mim mesmo nem ninguém, a ceia tava perfeita. Eu comia devagar, pois enquanto estivesse comendo na mesa era uma pessoa a menos pros outros acharem papo. Percebendo isso, o tio Carlos não se prolongou, “pois o governo tá uma merda sim” e saiu de perto de mim. Já estava bêbado.
O pequeno Lucas fitava a árvore de natal, o que será que ele estava pensando? Eu queria ser o pequeno Lucas nesse momento, ninguém ia querer conversar de política comigo. Nem de outra pauta chateante, como impostos de janeiro e trabalho e coisa do tipo.
Eu coloquei muito arroz, não estava aguentando. Então coloquei mais carne e mais farofa, comi e ainda sobrava arroz. Por que tanto arroz? É mesmo, que martírio, eu precisava engordar. Comer mais. Tava só osso. O final de ano, com natal e ano novo é bom pra ganhar peso. A tia Jandira sempre me via dizia tadinho tá tão magrinho.
O pessoal tava se juntando na sala pra rezar, era meia noite e um. Aniversário de Jesus. É a minha deixa. Saí da sala junto com a prima Isabel.
-Quem de nós vai se converter primeiro e ficar na sala?
-Pois é, e o tio Carlos sempre olha com cara feia a gente saindo na hora da oração.
-Deixa ele. Como é que vai o trabalho?
-Eu tô cansado, queria dar um tempo. Mas não posso, sabe como é.
-Sei. E aquela montanha de arroz no seu prato? Tá querendo engordar?
-Pois é, eu preciso. E você, nem te vi comendo nada. Não é isso que significa de verdade o natal, comer sem culpa?
-Nem posso, tô de dieta.
-A ceia de natal não é a exceção máxima da dieta? Achei que isso fosse universal.
-Você querendo ganhar peso e eu perder, mas no final das contas todo mundo come mais do que devia no natal. Até agora eu tô me segurando, e nem sei por que, aquele pudim safado fica me encarando.
(...)
-Será que este ano o papai noel vai ser o tio Dante ou o tio Carlos?
-Não sei, o tio Dante não chegou até agora.
-O tio Dante é uma figura, devia ser o papai noel todo ano.
-Já acabaram, podemos voltar para sala.
-Pode comer seu pudim em paz. É natal.
Isabel era legal, a não ser quando ela falava algo do tipo “tá querendo engordar?” sem filtro nenhum. Mas ela não fazia por mal, na verdade não fazia questão de eu estar ou não ali. Era mesmo a tia Jandira que ficava magoada com essas coisas. Afinal, ela que preparava tudo, a ceia, os enfeites, ela é que queria sempre unir a família e promover a felicidade natalina. Bem, ela já tinha me visto, já tinha se alegrado com minha presença. Eu sou um eremita que só aparece uma vez ao ano para a família na casa da tia Jandira. Ninguém liga muito pra mim. Eu podia ir embora a qualquer momento. Ou talvez conversar um pouco mais com Isabel, esperar para ver quem seria o Papai Noel deste ano, fazer especulações e piadinhas. Tentar me divertir um pouquinho, se possível. Olhei de longe e vi Isabel comendo um pudim, no canto da sala sentada na poltrona, ela me viu e deu um aceno sorridente. O pequeno Lucas ainda fitava a árvore de natal, talvez pensasse em seus presentes. Talvez estivesse ansioso. Ele realmente olhava a árvore como quem olha num espelho a si mesmo. Algo profundo. Talvez tivesse medo de não ganhar presentes.
Isabel se aproximou de mim.
-Como tava o pudim?
-Ah… estava divino.
-E o papai Noel? O tio Carlos daquele jeito a gente já sabe… não serve nem pra ser a rena.
-Era pra ser o tio Dante mesmo, mas ele tá passando muito mal. Nem quis vir. Foi a tia Jandira que me contou.
O pequeno Lucas ouviu a gente falando de papai Noel.
-O papai Noel não vai vir?
Se ele estava acordado até agora é porque queria ver o papai Noel, eu não poderia dizer qualquer coisa pra ele.
-Eu vi na tv que o polo norte tá derretendo. Não é lá que ele mora? É por isso que ele não vai vir?
Isso pra mim foi uma brecha, que logo, impensadamente dei uma resposta. Ele me olhava com aqueles olhos grandes e eu tinha que falar algo.
-Tá fazendo muito calor onde ele mora e ele é velhinho, entende? É isso mesmo, Luquinhas, tá tão quente que até a casa dele tá derretendo. Esse ano ele vai ter que ficar em casa.
Eu não devia ter dito isso. Não a coisa do aquecimento global. Eu não devia ter dito que o papai Noel não ia vir. “Idiota”. Me arrependi imediatamente. Tio Carlos ouviu e me cortou na hora. Não tinha visto que ele tava perto, nesse momento me arrependi mais um pouco.
-Para de falar bobagem pro menino. O papai Noel não vai vir porque é um frouxo que tá com dor de barriga. Que imbecil esse cara, Dor de barriga é pra ficar depois da ceia, não antes. Luquinhas, o polo norte não tá derretendo. O papai noel não veio porque tá com caganeira.
Acho que não dei a melhor resposta, certamente. O tio Dante “é” o papai Noel e ele não virá. Talvez se eu apenas dissesse que ele virá mais tarde. Mas é mentira, não virá. Não como Lucas imagina, todo vermelho e simpático e com presentes nas mãos. Não é fácil conciliar aquecimento global com papai Noel. Mas o que é fácil?
-Ele fica lá vendo qualquer bobagem na tv e fica falando essas coisas… Esses dias ele tava que nem louco falando de et e ovni. Ele ficava todo dia olhando pela janela pra ver se passava um ovni. Esse jornalzinho é uma porcaria, aquecimento global, a gente já sabe quem defende isso daí. Agora esses ovnis, cara, tem que tomar cuidado… Olha Luquinhas, será que eles não sequestraram o papai Noel igual fazem com aquelas vaquinhas?
O pequeno Lucas parecia aborrecido. Olhava fixamente para árvore de natal pensando no papai Noel assim como olhava o céu querendo ver naves espaciais. Assim como só o céu lhe mostraria um impressionante ovni, talvez ele pensasse que só a árvore desse um sinal do papai Noel. Que sinal seria esse? Na árvore só tem bolas de enfeite e pisca pisca colorido. Se o tio Carlos não dissesse ao pequeno Lucas a ideia boba de que o papai noel foi sequestrado pelos alienígenas. Ao menos eu disse algo sensato, algo que faz sentido. Que droga, isso não tem importância. Estamos falando sobre papai Noel ou extraterrestres? É uma disputa de quem é mais real ou do que é mais coerente?
Pedi pra tia Jandira me entregar o presente do Lucas. Deixei debaixo da árvore quando ele estava distraído. Finalmente fui embora. Mas antes fiz bem alto, lá fora, um “HoHoHo” de papai Noel. Peguei emprestado com a tia Jandira um gorro de natal e um jaquetão vermelho. Eu não olhei para trás quando ia embora, mas conforme combinado, nesse momento o Lucas deveria estar me vendo de longe pela janela, e a tia Jandira na orelha dele dizendo “ele veio, ele veio”.
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