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AI AI AI! Se os Computadores Fazem Arte, o Que A gente Faz?

Por Diogo Dias

 


“Fique ciente que fiquei encafifado com esse trem de computador que pensa.”


“Um troço desse que copia o que a gente remói nos pensamentos não tem condição.”


“Que diacho de panela embruacada véia dessa que dá de comer pra quem num tem fome?”


“E é, é?”



Esses porcos exercícios literários dificilmente sairiam dos algoritmos das chamadas “inteligências artificiais”. Pelo menos por enquanto... Mas lendo essas frases a gente pode se perguntar “mas por qual motivo eu deveria me preocupar se as IAs conseguem imitar frases tão ruins?” Ora, porque é justamente na imperfeição que mora a humanidade das coisas.


O modo como temos recebido a massificação das redes computacionais neurais capazes de processar quantidades gigantescas de dados em múltiplas camadas e com isso calcular milhares de cenários possíveis a ponto de gerar textos e imagens diz mais sobre o ser humano do que sobre as potencialidades da tecnologia em questão. Pois podemos nos valer dessa capacidade computacional para calcular soluções práticas que todos odiamos fazer e assim nos liberar para o ócio ou simplesmente terceirizar nossas tarefas cognitivas diminuindo assim nossa experiência com o fazer no mundo.


Comparar orçamentos, organizar arquivos, dividir custos de uma viagem entre amigos, estipular gastos anuais, elaborar probabilidades de seus eletrodomésticos precisarem de manutenção, encontrar erros em uma planilha de trabalho, enfim, todas as coisas que envolvem cálculos e probabilidades e que não temos a menor paciência para fazer no lápis já contam com ferramentas de inteligências artificiais generativas que dão conta do recado, mas nos corredores, ruas e redes sociais sinto as coisas indo para um outro lado. A geração de textos e imagens parece se sobressair às funções calculadoras. Ou seja, o que tem chamado mais a atenção das pessoas, são as possibilidades mais aparentes, mais espetaculares.


Isso não é uma exclusividade das chamadas inteligências artificiais, já que desde o surgimento dos meios de comunicação de massa há camadas de recepção das mensagens, conteúdos e técnicas. As novas tecnologias sempre aparecem em um nicho bastante fechado, de especialistas, cientistas, pesquisadores que se debruçam há muito tempo em problemas que de algum modo os levam a elaborar soluções específicas que abrem caminho para usos mais gerais. A internet, por exemplo, surgiu como solução para comunicação militar fechada e virou isso aí. Com as IAs não foi diferente.


O termo “inteligência artificial”, aliás, não é nenhuma novidade. Registrado pela primeira vez em 1956 como um campo de estudos pela Conferência do Dartmouth College, em New Hempshire nos EUA, ele se confunde com a própria história da computação. Pois a tarefa de um computador - como o próprio nome já sugere – é computar, calcular automaticamente um volume de dados em velocidade maior a que os humanos podem fazer.


Qual seria, então, a diferença entre o computador e o que chama-se de inteligência artificial hoje? A capacidade de processamento em rede e o que especialistas nomeiam de machine learning, ou seja, a capacidade das máquinas “aprenderem” a realizar tarefas sem a necessidade de inputs, comandos, humanos recorrentes. Se em nossos computadores cada tarefa depende de nossa ação, nas máquinas supostamente inteligentes, elas aprenderiam o que fazer por meio de redes que imitariam o funcionamento do cérebro humano, em que neurônios transmitem entre si estímulos para gerar as sinapses e assim pensar e agir. No entanto, essas redes neurais não pensam. O que elas fazem é complexificar o processamento, a computação de dados, com um número impressionante de variáveis, já que os estímulos são múltiplos e possuem um volume de dados avassalador.


Mas poderíamos nos perguntar: só de dados vive o pensamento? Sou categórico em afirmar que não!


Para o ser humano, os modelos de pensamento matemáticos são apenas uma das diversas formas de pensar. Se retornarmos à história pré-moderna, veremos que a ciência não tinha a matemática como sua principal matriz como é hoje. Ainda assim, o ser humano sempre realizou suas descobertas, acumulou conhecimentos, desenvolveu técnicas e graças à linguagem simbólica pode transmitir tudo isso às gerações futuras. As narrativas, os poemas, as técnicas artísticas, as festas, os rituais, os hábitos e costumes, também são formas complexas de expressão do pensamento e nem sempre podem ser traduzidas matemática ou linguísticamente.

Além disso, a capacidade de transformação, rearranjo e criatividade humanas, estão profundamente ligadas a fatores emocionais, afetivos, sentimentais, psíquicos, que estão longe de serem compreendidos a ponto de serem decodificados em linguagens de programação. Ao contrário dos algoritmos, temos uma relação vital com o improvável, o insondável, o mistério. A fonte da nossa imaginação é aquilo que não conseguimos compreender.


As máquinas supostamente inteligentes não passam de super-calculadoras. O que já é o suficiente para modificar significativamente as relações sociais e culturais. A alta capacidade de cálculo de fato tem a capacidade de nos libertar de muitas tarefas, mas temos que nos perguntar se devemos ou queremos nos libertar de algumas delas. Construir objetos, escrever poemas, romances, peças teatrais, compor uma canção, desenhar um projeto arquitetônico, planejar uma viagem, ler lentamente, fazer contas no papel, conversar, perguntar algo a alguém, estudar profundamente são ações que nos colocam em outro estado mental. Nos envolvem corporalmente no pensamento, nos conecta com a materialidade e a humanidade das coisas. Querer otimizar o ócio é uma exigência ideológica do capitalismo, pois no atual estágio somos resumidos em fontes de dados.


Somos nós, humanos, que treinamos todos os dias os computadores responsáveis pelo processamento de dados das IAs. O que escrevemos no Whatsapp, as imagens que produzimos e compartilhamos via redes sociais, nossas falas por telefone ou em mensagens de áudio, nossas perguntas e solicitações para os chatbots (os robôs que respondem aos nossos comandos) das diversas ferramentas de IA, são formas de extração de dados. Nós fornecemos diariamente a matéria-prima que é capitalizada pelas grandes empresas de tecnologia, as Big Techs. Ora, a ilusão está justamente na promessa de que isso necessariamente nos traz benefícios. Nos moldes em que o negócio está desenhado, nós estamos sendo sugados para a criação de um mundo que somos obrigados a desejar. A premissa do filme Matrix deixou de ser uma metáfora e virou uma alegoria.


Contudo é importante lembrar que as tecnologias nunca carregam em si valores bons ou maus. Ela são modos avançados de transformação do mundo que estão em constante disputa. Tomo emprestada uma linha do texto do espetáculo Canção Indigesta do grupo paulistano Engenho Teatral: “[As consequências da inteligência artificial] serão boas ou más? Elas TÊM que serem boas!”. O espírito é esse. Assim como nas grandes revoluções técnicas, como os adventos da linguagem, da escrita, da imprensa, dos meios de comunicação de massa e da internet, não será possível voltarmos ao mundo como era antes. Nos resta compreender profundamente e disputar politicamente o uso, a regulação, o controle do que pode essa tecnologia.


Precisamos entender que o que parece inofensivo na verdade está alterando silenciosamente nossas estruturas subjetivas de desejo, emoção, cognição, criação. Em última instância, tem alterado nosso funcionamento fisiológico. Por outro lado, as estruturas sociais do trabalho, do consumo, das relações também estão sendo condicionadas pelos interesses de mercado de forma ainda mais intensa e eficaz. A receita de bolo do caderno da família agora é substituída pelo comando: “ChatGPT me dê 3 opções de bolo fácil e rápido de fazer”. Parece pouco, mas não é. Por isso, a criação humana, com suas complexidades e imperfeições é um patrimônio a ser protegido. Bolos perfeitos ou textos matematicamente coerentes nos tornarão incrivelmente eficazes e terrivelmente insossos e chatos. Re(ex)istiremos?

 

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