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Foto do escritorGoretti Giaquinto

Se contar, ninguém acredita



Fantasia estilizada de fada
Mulheres: fadas do dia a dia, sem asas (Imagem: DALL-E 3)


O post na internet convocava para um grande encontro num bloco que tinha um nome interessante: Salve às Mulheres. Não “salvem as mulheres”. Parecia, a princípio, um grito de guerra feminista, ou um tardio reconhecimento ao valor feminino. O Google Map mostrava a localização, que não era muito distante — numa área de chácaras, uns 2km de distância do núcleo urbano. O convite era pra pular o restinho do carnaval com música, open bar e comida de graça.

De graça até injeção na testa, dizem. Eu não concordo muito...

Um convite irrecusável, claro. Não só porque não havia carnaval em clubes, na minha cidade, e o carnaval de rua foi extinto, por falta de verbas públicas. Nem pensei no fato de ser tão irreal a ponto de ser uma pegadinha, um sequestro, uma notícia fake. Era tentador por justamente ser quase irreal.


De boca em boca, eu e minhas amigas logo concordamos em participar. Obviamente, visitamos o lugar previamente, para confirmar que existia, e que era seguro.  A minha turma, composta de mulheres exaustas do dia a dia cansativo, faríamos qualquer coisa para deixarmos nossos maridos cuidando dos filhos por metade do dia. Ficamos muito animadas. E o convite veio pra nem pensarmos duas vezes.


— Largar o marido em pleno carnaval, cuidando dos nossos filhos pra garantir que não iriam escapulir?  Tô dentro — uma por uma, a resposta foi a mesma.


A convocação só tinha três poréns: o encontro era específico para mulheres, que teriam quer vir fantasiadas, e, como a bebida era gratuita, teriam que vir de Uber. Para garantir a segurança da brincadeira. E, casadas ou solteiras com filhos, não poderiam avisar aos respectivos maridos, nem a ninguém, a partir da leitura da convocação.


Teríamos que esconder, para entrar no clima de fantasia da brincadeira. Que, garantiam, era séria e segura.

O encontro seria na quarta de cinzas — pós Carnaval, o que viabilizaria o convencimento da mulherada casada. De manhã. Um descanso merecido para aproveitar o restinho do feriado, antes do trabalho diário que logo começaria. Risco zero, todas concordamos. Fácil de dar desculpas — visita à mãe, day spa, ou qualquer outra desculpa que certamente não seria ouvida pelos maridos tão “aéreos” no dia a dia.


— Ideia genial — disse minha amiga de faculdade, que virou irmã de aventuras. Eu, casada, ela, mãe solteira. As duas, sempre à espera de sinais do destino para movimentar nossas vidas exaustivas.


E fomos, um grupo de dez mulheres em dois carros de aplicativo. Amigas de grupos do colégio/balé/esportes/inglês das crianças, família, que montamos um grupo de WhatsApp específico para a combinação. Optamos por fantasias com uma cor em comum, o vermelho, e o tema que tínhamos escolhido, em comum com o nome do bloco:  Fadas.  


Máscaras iguais para todas, cobrindo o rosto; perucas coloridas, com cabelos presos e recheados de confetes, brilhos de glitter pelo corpo. Roupas leves, aproveitadas do guarda-roupa que tínhamos, para não despertar a atenção, e que pudesse ser vestida no trajeto. Evitando desconfianças.

Animação contagiante, certas de que esse seria o nosso carnaval. Passaporte de momentos sem preocupações.

Logo chegamos, logo nos enturmamos com as outras mulheres, também animadíssimas. Tentávamos descobrir o (ou a) responsável pelo evento, mas ninguém sabia. Deixamos pra lá, decidas a aproveitar o momento até o fim. Música, bebidas, canapés e alegria formavam um bloco único de mulheres felizes pela folga merecida.  


A maioria de nós era casada há um bom tempo, pelo que descobrimos num ou outro momento de encher nossos copos, no bar — um lindo quiosque com material translúcido cheio de luz e cores, esfumaçado e com algo que parecia nos dar um choque de energia ao nos aproximarmos.


Reparei que, mesmo enchendo e virando o copo muitas vezes, não ficava bêbada. Eu, que com um copo de qualquer bebida ficava rindo à toa, para chorar aos tubos, depois. Pelo contrário, cada vez que ia buscar um refil de bebida, ficava mais feliz. E o gosto... Era semelhante à bebida que eu pedia, sem a ressaca que podia vir em troca. Nunca bebi tanto, sem medo de ficar tonta ou falar besteiras. Ou fazer bobagens.


As mulheres estavam dançando como se viciadas na mágica que o ambiente exalava. Sem brigas. Sem fofocas. Sem medo. Umas com as outras, deslizávamos como fadas pelo amplo salão, decorado com materiais que refletiam luzes em todas as cores do arco-íris.

Num dados momento, algo estranho aconteceu. Estranho porque nem eu nem ninguém havia percebido, até então, um grupo de pessoas fantasiadas sem que fosse possível definir o gênero. Pessoas que brincavam sem cantar. Dançavam com todas, sem conversar. Nos serviam sem pedirmos. Sorriam sem mexer os lábios – e se mostravam com rostos diferentes, cada vez que encaradas. Transmitiam calma e alegria através de um feixe de energia que nos conectava.


Aos poucos, eu e minhas amigas fomos percebendo — e comentando — que essas pessoas pareciam flutuar, seus pés não tocavam o chão. Como a tecnologia permite tudo, deixamos pra lá. Depois, observamos que não bebiam nem comiam. Apenas dançavam conosco, transitando entre as mulheres convocadas,  num balé que, reconhecemos, parecia uma tentativa de imitação dos nossos gestos, e das outras mulheres, no evento.


Chamei minha  amiga num canto, eu já com um medinho querendo estragar a beleza do momento. Meu lado racional querendo desvendar o que podia estar acontecendo, desconfiada de que estivéssemos sendo cobaias de algum experimento. Ou que logo seríamos mortas, envenenadas pela bebida gratuita. Ou que logo apareceria um doido com um fuzil na mão. Coisas da realidade que passam pela minha cabeça, mesmo no Carnaval. Ou , pior no Carnaval.


Eu e minha amiga já não estávamos tão tranquilas, nem nos divertindo como quando chegamos. Era meio irreal vermos pessoas levitando. Estaríamos mortas?

Foi quando notamos algo mais estranho. As fantasias das pessoas esquisitas começaram a cair ao chão, desnudando o que parecia ser figuras translúcidas, sem forma definida, nem feições.


O alvoroço tomou conta das mulheres, que se juntaram a nós num canto, com medo do que poderia acontecer. A música parou.

Um silêncio tomou conta do ambiente, e uma figura — com brilho maior que as demais — se deslocou até o palco onde a orquestra (que sumiu num minuto, literalmente) antes tocava, e, sem precisar de microfone, pediu a atenção de todas nós.


— Não tenham medo, meninas — a figura ameboide, sem abrir nada que parecesse uma boca, começou a falar. — Somos de uma outra dimensão, que vamos chamar de planeta, para vocês entenderem.

Um burburinho se fez no ambiente.

— Calma, peço a atenção e compreensão de todas, — continuou — logo vocês vão entender.

— Convocamos algumas de vocês aqui, porque foram indicadas por uma ordem maior.

Silêncio. Alguém gritou, com voz ansiosa: Que ordem?

— Não importa vocês saberem quem, mas porquê. Vocês foram escolhidas, e devem se orgulhar disso.

Outro grito, da plateia: Pra quê? O que querem com a gente?

— Nós estivemos acompanhando o sonho de cada uma de vocês, e todas pediram um momento de paz pra poderem resgatar a alegria que há tempo não têm.

Mais burburinho, todas querendo falar ao mesmo tempo.

— Silêncio, por favor. Sabemos que vocês, mulheres, sempre falam antes de ter respostas, mas é necessário aguardarem para saber o porquê de estarem aqui. Não tenham medo. Sintam-se honradas.

Não enrola, gritou uma das mulheres.

— Vocês vieram pra se divertir sem preocupações, deixando suas casas por uma manhã. Todas tem filhos, e estão cansadas do dia a dia. E a Ordem Maior decidiu dar esse presente pra vocês.  Um momento de Salve à vocês, mulheres, pelo tanto que fazem, com o pouco que recebem!


Nos entreolhamos, caladas. Surpresas. Sem dar um pio. No fundo, concordando com a fala.

— Logo vocês estarão de volta às suas casas. Estarão felizes, mas não se lembrarão do que está acontecendo aqui.

Como não? Gritou uma delas.

— A partir de agora, todas vocês cairão num sono profundo, e serão levadas de volta para seus corpos, que já estão em suas camas.

— Vocês foram transportadas para cá desde o dia que pensam ter lido a convocação que fizemos. Vocês estarão leves, e se sentirão recompensadas pelo que fazem em suas rotinas. E iniciarão um novo ciclo, em que trarão música e amor-próprio para duas vidas.


O burburinho recomeçou. Uma fumaça colorida foi descendo, e eu e todas mulheres fomos deitando, lentamente, caindo num sono pesado.

 

Pela manhã, abri os olhos, ainda lembrando do sonho estranho que acabara de ter. Sem ideia de em que dia estava.


A porta se abriu, e as crianças pularam na cama, fazendo algazarra, seguidas pelo meu marido, que trazia uma bandeja com meu café da manhã. Espreguicei-me, sentei na cama sorrindo, e perguntei o que estava acontecendo.


— Você tem chegado do trabalho muito cansada, e ontem chegou tão exausta que cochilou de imediato — explicou o marido —. Dormiu mais de treze horas seguidas. Deixamos você descansar, afinal hoje é Carnaval, e temos todo o feriado para descansar.

Deu um beijo em meus lábios, piscou um olho e arrematou:

— Espero que tenha tido um bom sonho. Você parece tão ... leve....




 

Goretti Giaquinto

Desafio #39 de 365

Tema: Invasão carnavalesca

Descrever o ambiente onde está, na hora da invasão, o mais detalhadamente possível, descrevendo a interação com os invasores.

Gênero fantasia, mínimo 1000 caracteres



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1 Comment


Cátia Porto
Cátia Porto
Feb 11

Ai, tudo que eu queria nesse carnaval! KKKK

Adorei! Quem sabe um dia acontece mesmo...


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