Que é de aquele menino?
Camapuã MS
No portão da casa ela foi chamada. Seu irmão de criação avisa assim meio que
sem preparo:
- Evanir o Zé morreu!
Difícil assimilar que aquele homem negro de 29 anos, mais de 1,80 de altura e muita disposição não resistiu a um infarte. Agora aquela, ainda miúda, branca de cabelos ondulados, riso tímido de menina, olhos sobressaltados e pouco mais de 1,60 de altura tinha o mundo, uma cria, o dia e a noite pra enfrentar.
Então a cria deu um salto no ventre da infante de 17 anos. Foi o último movimento e não mais se mexeu até a hora do parto. Era dia 07 de novembro de 1979 quando o ar irrompeu as vias aéreas, descolando os pulmões e o choro brotou. Então a criança vem ao mundo já sem pai vivo. Mirrado, fraco, cor da pele demasiado escurecida por alguma falta que não se sabe o que. Saíram da casa às pressas e em preces pra levar ao hospital, receber sangue de um desconhecido. Vingou.
No batismo ganhei o nome de José pra ao pai homenagem e um segundo
nome que minha mãe achou por bem colocar, então surge José Arcivaldo, mas foi Zezinho por muito tempo. Pra ela o é até hoje.
Filho de mãe solo e muito jovem, em 1983, aos 4 anos, passei a morar com a minha avó materna, que em verdade adotou minha mãe, quando minha avó biológica desapareceu e minha mãe foi entregue pelo próprio pai aos cuidados de um casal vizinho.
Três anos depois, no mesmo 05 de novembro, dia e mês em que morreu meu pai, mas agora em 1986 morre a mãe dele, minha vó Nêga. Uma preta de beiços fartos que cardava lã enquanto pitava um paieiro do inicio até o fim sem tirar da boca e nem pausar o trabalho.
Revirava o cigarro na boca puxando a fumaça de um lado e soltando do outro. Era linda minha avó.
A família da avó materna é formada por gente branca, vinda de proprietários de área rural e que até hoje votam no candidato que for mais “bonito” com cara de ser gente de bem e inteligente. Bem... a gente sabe bem quais são os “predicados” estéticos que dão essa impressão não é mesmo? Assim dos 4 aos 12 anos de idade morei nessa casa e refugiado nos brinquedos, rua de terra pra rolar na areia e dividindo o tempo com os afazeres domésticos aos quais fui direcionado desde o 6 anos até o último dia de morada alí. Pouco riso e muito siso era a lei. Mas menino arteiro e matreiro eu encontrava abrigo nas histórias
que criava, ouvia e produzia.
Recém completados os 13 anos , em 1992 voltei a morar com minha mãe. Agora
tinha também minha irmã e dois irmãos. Mas eu era o mais velho e único filho
do Zé do Terto. Meu avô paterno se chamava Tertuliano.
Aquidauana MS
Em 1994, vou estudar em regime de internato em uma escola agrícola em outra
cidade. Lá vivi 4 intensos e jovens anos. Período de descobertas e enfrentamentos. Me formei em 1997 como técnico em agropecuária. Era um dos melhores inseminadores da turma. A prática de lida no campo é uma paixão até hoje.
Nesta mesma escola descobri o fazer teatral mais estrutrado. Coisa que já vinha
praticando na escola e grupos comunitários desde infância. Mas alí eu tive aulas e montamos dois espetáculos e foi quando o professor orientador do grupo me disse que no teatro a gente pode fazer o personagem que quiser. A pessoa a ser homenageada no enredo da peça era um homem branco e eu queria fazer o personagem. Contei ao professor do meu anseio e também do entendimento de que eu não poderia faze-lo por ser eu uma pessoa negra. Então ele se rindo disse que isso não era um problema no teatro. Eu ri, cresci 7 metros e fiz o personagem.
No último ano do curso participamos de um festival de teatro e eu fui indicado a
prêmio de melhor ator. Aí a coceira artística ganhou força e curiosidade. Quando me formei, saí direto para uma vaga de trabalho como inseminador responsável técnico aos 18 anos. Trabalhei 3 meses cumprindo um contrato e já ia seguindo pra uma oportunidade melhor em outra fazenda em minha cidade natal, Camapuã.
Campo Grande MS
Na passagem pela capital do estado, onde cheguei em 01 de março de 1998, fiquei uns dias, pois minha mãe morava alí nesta época. Logo entrei em contado com pessoas do teatro que haviam conversado comigo no festival de teatro do ano anterior.
Diante do convite em participar da Cia teatral eu optei por experimentar esse fazer artístico, sem saber ao certo do que se tratava. Se quisesse mais adiante voltar pro mato e pra profissão eu estava certo de poder fazer isso tranquilamente, mas o teatro brotou ali e possivelmente não surgiria noutra feita.
Fiz peças, cursos, estudei dança, atuei e dancei profissionalmente em Campo grande de 1998 até 2010. Cinco anos depois de começar eu já podia escolher quais trabalhos fazer e com quem trabalhar. No ano de 2000 em uma conversa e por sugestão de uma amiga, resolvi então abreviar meu segundo nome, Arcivaldo e reunir com o sobrenome herdado de mamãe. Surge aí Arce Correia.
Em 1999 conheci um moço no grupo de teatro e fui compreendendo e aceitando minha sexualidade. Em um feriado do dia 15 de novembro deste mesmo ano, nos brinquedos dentro da piscina e entre um mergulho e outro, começamos essa relação a qual, por culpa e insistência dele, matemos até hoje em 2021. Eu bem que tentei, mas não consegui escapar do que eu também não quero fugir.
Quando a gente ama, simplesmente ama.
Em 2009 fizemos uma cerimônia de celebração dos 10 anos e oficializamos o casamento. Duzentos e cinquenta convidados em um espaço que era um sonho a gente concretizou o nosso. Danças circulares sagradas, amigos, gente que foi de penetra, enfim tudo que estas festas têm, ou pelo menos as mais divertidas e bonitas. Em dado momento choravam noivos, padrinhos, madrinhas e convidades todes.
_ Perae gente. Isso é um casamento e não velório.
Então o riso se refez e a festa seguiu.
São Paulo
Pra tentar suprir o anseio pelo aprendizado e novos ares, em 2011 vim pra São Paulo estudar na Escola de Arte Dramática na USP, me formando em 2016. Em 2014 entrei também para a universidade Anhembi Morumbi e me graduei em 2017 com licenciatura e bacharelado. Um salve ao ENEM e ao plano PROUNI.
Em 2019 incentivado por meu companheiro, esse esteio do nós e pelo comichão de escrevinhamentos, reuni meus rabiscos decidido a me empreitar na publicação de um livro. Me juntei a um amigo músico e montamos um show alinhavando meus textos e minhas músicas. Mas o livro ainda não nasceu pois a editora era em verdade uma golpista e me enrolou por quase um ano e não fez a publicação. Logo menos essa criança nasce e vai me faltar só o filho humano pois arvores tenho plantado um tanto.
Hoje, bem... hoje eu tô ainda entendendo onde e como estou. Noutra feita volto aqui pra contar. Mas também a gente combina uma prosa pra podermos frasear nossas histórias e fiar muitos causos.
Se nada é por acaso, que a gente faça isso de caso pensado e realizado.
Até já.
Arce Correia é um artista Sul matogrossense residindo em São Paulo desde 2011.
Ele participa do projeto É DIA DE ESCREVER no Grupo de Negritudes.
Conheça o arce e suas histórias no instagram @arcecorreia
Comments