O Porão de Memória
- Edu Mussi

- 12 de ago.
- 11 min de leitura
Raimundo era um caixeiro-viajante moderno. Não viajava com malas de amostras dos produtos que vendia, como antigamente. Sua única bagagem era um mochilão com algumas mudas de roupa e uma rede de tecido fino e resistente para dormir. Pendurado no ombro uma pequena bolsa onde levava seu notebook e um bloco de formulários para preencher pedidos em lugares onde não havia internet. Vendia uma variedade de mercadorias, tais como: materiais para pesca; tecidos diversos; alimentos enlatados; ferramentas em geral e muitos outros produtos. Seu escritório de representação, antes localizado em Campinas, foi transferido para Santarém, por questões pessoais e eu não quis cometer a indiscrição de perguntar o motivo da transferência.
Certa vez, tomando cerveja com ele, em um bar na beira do rio Tapajós, em Santarém, perguntei-lhe:
— Por que você não manda seus funcionários viajarem? Afinal você é o dono da empresa.
— Porque adoro viajar, não sei trabalhar trancado numa sala, Luis.
— Há quanto tempo você está em Santarém?
— Há poucos meses. Estou desbravando a região, pois não conheço nada daqui. Mas nesse pouco tempo que estou aqui, já tenho algumas histórias guardadas no meu porão de memórias.
— Conte algumas, por favor:
Ele começou pelo relato de sua primeira viagem à Juruti, cidade localizada às margens do rio Amazonas, oeste do Pará e que faz limite com o estado do Amazonas. Foi sua primeira viagem de barco.
— Peguei uma embarcação grande, com dois andares, que faz o trecho Santarém a Manaus, com parada em Juruti. Embarquei por volta das 17 horas, amarrei minha rede no salão do andar de cima para garantir um bom lugar. Preferi viajar em rede a usar camarote. A maioria dos viajantes utiliza as redes como meio de acomodação, porque além da passagem ser mais barata, é muito mais agradável. O barco partiu pontualmente às 18:00 horas, navegando em águas tranquilas pelo rio Amazonas, no sentido contrário a correnteza. Exatamente à meia-noite o barco aportou no trapiche de Juruti. Desembarquei com minha mochila na mão e a bolsa pendurada no ombro. Percebi a cidade deserta, exceto no trapiche pela movimentação dos embarques e desembarques.
— Nossa! O que você fez?
— Aproximei-me de um rapaz encostado num poste e perguntei onde eu poderia achar uma pousada, hotel, ou coisa semelhante?
O cara olhou para mim e logo viu que eu era novato por aquela região, respondeu:
— Aqui não tem hotel, mas em frente àquela casa com uma lâmpada acesa na porta é a pensão da dona Mariazinha. Pela hora ela não vai abrir a porta para o senhor, mas vá lá e veja, concluiu o informante.
— Fui até a pensão e esmurrei a porta diversas vezes e ninguém apareceu. Olhei ao redor e vi uma pracinha que havia em frente. Escolhi um banco, fiz de mochila travesseiro e dormi atracado com a bolsa. Para minha sorte o período era de estiagem e a noite era de céu claro cheio de estrelas.
— Você passou à noite deitado naquele banco?
— Sim, e por volta de 5:30 h da manhã acordei com o focinho de um cachorro na minha orelha. Observei que o dia já estava clareando, olhei para pousada com a porta aberta. Dirigi-me até a pensão e fui recebido pela dona Mariazinha.
— Bom dia, meu filho. Seja bem-vindo.
— Preciso de hospedagem.
— Está no lugar certo.
Anotou meu nome e acomodou-me num quarto com banheiro.
— Vá se banhar, depois venha tomar café, disse a bondosa senhora.
— Devidamente instalado, e após o café da manhã, esperei a cidade despertar e iniciei minhas visitas ao comércio local. Minha primeira viagem foi uma excelente experiência e de sucesso.
Raimundo pegou embalo e não parou de falar. Só parava um instante para dar um gole na cerveja e emendava uma história atrás da outra. Eu só fazia ouvir e lidar com o garçom nos pedidos da bebida e petiscos.
— Outra viagem interessante, continuou meu companheiro de mesa de bar, foi para Parauapebas.
— Onde fica essa cidade?
— Localiza-se ao Sudeste paraense, distante de Belém aproximadamente 700 quilômetros. Para chegar até lá, fui até Belém de avião, e peguei outro voo de linha até meu destino final. Pousamos em Serra dos Carajás. Do aeroporto tomei um táxi que me levou a um hotel indicado pelo motorista, pois não conhecia nada daquela região.
— Uma maratona, não é meu amigo?
— Pois é...Como cheguei cedo, ainda tive tempo de fazer minhas visitas a uma grande parte dos comerciantes. A praça é boa, vendi bastante no primeiro dia.
— Você usa carro na cidade?
— Não. Andei muito, mas valeu a pena. No horário do almoço fiz apenas um lanche pelo caminho e só fui me recolher ao hotel no final da tarde. Tomei banho e descansei um pouco da caminhada. Por volta de oito horas da noite, a fome bateu.
— Havia algum lugar bom para se comer?
— O recepcionista do hotel indicou-me um restaurante do outro lado da rua. Ele recomendou-me a não recomendo à noite pela cidade, porque não é muito seguro.
— E o restaurante era bom?
— Sim. Comida boa e barata. Observei que o preço de um sanduiche seria praticamente o mesmo de um jantar à base de churrasco. Perguntei ao garçom se era muita comida e ele me respondeu:
— Não, senhor. São dois pedaços de carne no espeto acompanhado de macarrão, feijão, arroz e salada, um pouquinho de cada.
— A descrição daquele prato me estimulou o apetite, então fiz o pedido do jantar. Quando trouxeram a comida, me assustei com a quantidade. O espeto era enorme com 4 pedaços grandes de carne e uma porção enorme de macarrão, feijão, arroz e salada.
— Você comeu tudo?
— Claro que não. Percebi que não daria conta de comer tudo, chamei um garoto com sua caixa de engraxate pendurada no ombro e o convidei para jantar comigo e ele aceitou, mas me pediu licença e foi convidar mais dois garotos, também engraxates, para acompanha-lo e me perguntou:
— Meus amigos podem comer comigo?
— Podem sim, mas a mesa vai ficar muito apertada para nós. Vou providenciar uma para vocês aqui ao lado.
— Eles devem ter ficado muito feliz.
— Ficaram radiantes. O garçom relutou por causa da aparência dos meninos, mas fui firme e disse-lhe que eram meus amigos.
— E como os garotos se comportaram?
— Muito bem, acomodaram-se à mesa e depois de eu ter me servido de um pedaço de carne com um pouco de salada, passei o restante para os meninos. Solicitei uma garrafa pet grande de guaraná para eles e assim concluí meu jantar em boa companhia.
Tão logo meu companheiro de conversa terminou sua segunda história, pedi ao garçom mais uma cerveja, uma porção de bolinhos de piracuí e perguntei sobre outra viagem, pois seus relatos eram interessantes.
— Fui fazer a praça em algumas cidades da Transamazônica e passei por uma situação inusitada na cidade de Uruará.
— Como você chegou naquela cidade?
— Fui de avião de Santarém até Altamira, e de lá peguei uma kombi que faz linha até Uruará, distante 180 quilômetros. Foi a primeira viagem que fiz por aquela região e no período de pouca ou quase nenhuma chuva.
— Então nessa época deveria estar uma secura.
— Muito seco. A poeira na estrada é intensa, que forma uma nuvem densa e prejudica a visibilidade. Na kombi viajavam dez passageiros e o calor era infernal, se abríssemos a janela para entrar um vento, o interior do veículo ficava irrespirável por causa da poeira.
— Que horas você chegou lá?
— Por volta das 17 horas e por indicação do motorista, fui a um hotel próximo ao ponto das kombis. Na recepção, perguntei quais eram os tipos de quarto disponíveis e o rapaz respondeu:
— Temos apartamento com ventilador, os mais baratos e apartamentos com ar-condicionado cujo preço é mais elevados. Optei pelo de ar-condicionado, pois já haviam me informado que a cidade era muito quente e tinha muito pernilongo. Ao formalizar o registro de entrada, o funcionário do hotel me alertou:
— À meia-noite faltará energia elétrica e só retornará às seis horas da manhã.
— Espera aí! – Eu disse. – Vamos ficar praticamente a noite toda sem energia elétrica?
— Sim, infelizmente, respondeu o rapaz. Estamos passando por esse problema e isso acontece todos os dias.
— Então por que você está me oferecendo quarto com ar-condicionado se nem ventilador funcionará? Muda meu quarto, por favor, para o mais barato.
— Que situação, meu amigo!
— Acomodei-me no apartamento e pendurei logo minha rede de dormir. Tomei banho frio para tirar toda a poeira e refrescar o corpo. Deitei-me para descansar um pouco e acabei pegando no sono. Despertei-me por volta das vinte horas com algumas ferradas de pernilongos. Aí falei comigo: com este calor infernal e com esses pernilongos, só conseguirei dormir anestesiado pelas cervejas.
— O que você fez?
— Desci e perguntei ao recepcionista onde poderia tomar cerveja, naquele momento.
— O rapaz indicou-me um quiosque localizado bem no meio de uma avenida, situada-logo dobrando a esquina da rua do hotel. Ao chegar no quiosque, fui recebido pela sua proprietária, aliás, ela era a única pessoa que estava lá para atender. Uma senhora de meia idade com seus 50 anos, aproximadamente, muito simpática e bem extrovertida. Foi logo dizendo:
— Este calor está pedindo uma cerveja bem gelada.
— Foi para isso que vim aqui, lhe respondi, me acomodando em uma mesa próxima ao balcão do quiosque. – A senhora trouxe uma cerveja bem gelada e me perguntou se eu queria algo para comer.
— O que a senhora tem pra me oferecer.
— A Senhora não sabe, pois ela está no céu, brincou ela. Tenho petisco de filé acebolado; calabresa frita com cebola; macaxeira frita; e carne seca acebolada. Me chamo Manuela. Seja bem-vindo ao meu bar.
— Muito prazer, Manuela, retruquei. Eu sou Raimundo. Para começar, me traga carne seca acebolada.
— Boa escolha, espere um instante tomando essa cerveja bem gelada.
— Quando ela trouxe o petisco, convidei-a para me fazer companhia, pois naquele dia da semana, não havia mais nenhum freguês para ela atender e ela não se fez de rogada.
— Tudo bem Raimundo, mas não vou beber, só lhe acompanharei na conversa, porque estou no trabalho.
— Seu sotaque é diferente das pessoas daqui. De onde você é Manuela?
— Vim de muito longe. Sou de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Eu e meu marido viemos parar aqui na época da abertura da Transamazônica.
— Por que vieram de tão longe para este fim de mundo?
— Porque os militares, na época da ditadura, dividiram muitas terras por aqui, nos ofereceram um lote com muitas promessas não cumpridas e, como não tínhamos nada em Caxias, aceitamos.
— Que aventura, Manuela!
— Pois é... Eu e meu marido éramos jovens, não tínhamos filhos, então para nós o desbravamento foi uma oportunidade e esperança por dias melhores. Depois de acomodados em nossa terra, iniciamos uma pequena plantação de cacau, pois o espaço que nos coube, não permitia grandes coisas. Nossa iniciativa deu certo, mas o destino não quis que tivéssemos sucesso.
— Por que Manuela?
— Meu marido foi mordido por uma cobra venenosa, que tirou sua vida em poucos minutos. Não tive tempo de buscarmos ajuda do vizinho.
— Você ficou só, depois disso?
— No primeiro momento fiquei desesperada, sozinha naquele lugar ermo, porém a solidariedade dos meus vizinhos amenizou bastante minha dor e me fez enfrentar o desafio de tocar aquele modesto empreendimento, afinal eu não tinha outra opção.
— Por que você montou esse negócio, então?
— Quando já havia superado o infortúnio pelo qual havia passado, surgiu outro obstáculo, apareceu um sujeito que se identificou como corretor de um grande fazendeiro com a proposta de comprar minhas terras para atender um grande projeto de agronegócio.
— Pelo visto você aceitou.
— Não tive outra alternativa, porque fui ameaçada de morte se negasse em aceitar a venda.
— O valor que lhe pagaram foi pelo menos justo?
— O preço que acertaram, mal deu para montar esse negócio. Hoje moro de aluguel.
— Já está tarde, vou para o hotel. Acabei de falar a energia elétrica foi embora. A escuridão tomou conta da cidade, não se enxergava um metro à frente.
— Não se preocupe. – Manuela levantou-se e disse:
— Tenho um pequeno gerador que vai nos tirar do escuro, mas só aguenta até às três horas, pois acabará o combustível, além do mais, preciso dormir, não é meu filho?
— Vou ficar mais um pouco e já lhe deixo sossegada. Me traga a saideira, por favor.
— Não se preocupe com a escuridão, lhe darei uma vela para iluminar seu caminho.
— Muito obrigado – Despedi-me de Manuela uma e meia da madrugada e saí igual a um fantasma caminhando através da escuridão com o toco de uma vela acesa na mão. Com muito esforço, cheguei ao hotel e bati inúmeras vezes na porta até um sujeito abriu mal-humorado, com cara de quem havia sido acordado de um sono profundo.
Quando Raimundo deu uma trégua nas suas histórias, aproveitei para lhe perguntar
— Você é casado?
Ele me olhou sério por alguns segundos, depois virou o rosto em direção ao rio Tapajós e ficou calado, pensativo por longo tempo. Depois virou-se para mim e disse:
— Já fui meu amigo e não gosto de falar nesse assunto, mas como gostei muito de você vou lhe contar uma breve história.
— Sou de Campinas e morava lá. Casei-me quando tinha pouco mais de vinte anos com uma campineira. Éramos muito felizes e tudo estava dando certo em nossa vida. Tínhamos um filho de três anos, minha esposa era professora do município e eu tinha uma corretora de seguros. Certo dia, no trabalho, recebo a comunicação de um acidente de carro com minha esposa.
Raimundo parou de falar, suspirou profundamente e vi que a emoção estava tomando conta dele. Com muito esforço ele continuou.
— Uma carreta avançou o cruzamento sem parar, e colidiu na lateral do carro dela arrastando o veículo por mais de dez metros. Ao ouvir aquela informação, meu desespero foi tão grande e não sei como cheguei ao local do acidente tão rápido. Ao deparar com a cena, por pouco não desmaiei.
Raimundo já estava com a voz carregada de emoção.
— Encontrei nosso carro igual a uma folha de papel amassada. Minha esposa e nosso filho estavam esmagados dentro do veículo. Minha dor foi tão grande que paralisei. Não me movia, não chorava, não falava nada, apenas assistia os socorristas do SAMU e dos Bombeiros fazerem o serviço de retirada dos corpos. Não sei quanto tempo depois chegaram as duas funcionárias que trabalhavam comigo na corretora e me levaram para o pronto socorro, pois eu estava passando mal. Fiquei um dia internado para me recuperar do choque. No dia seguinte todas as providências para o funeral já haviam sido tomadas pelos meus parentes. Os corpos foram cremados e as cinzas espalhei no Parque Ecológico, pois aquele lugar era o preferido de minha esposa e meu filho. Eles adoravam aquele lugar. Todos os domingos íamos até lá para fazer piquenique, andar de bicicleta. Ficávamos a manhã inteira.
Raimundo ficou calado, olhando para o vazio e eu não quis interromper seus pensamentos, mas logo em seguida ele continuou.
— Após o acidente, vivi como um zumbi. Não tinha vontade nem prazer de fazer nada. Para mim, nada mais tinha significado e só desejava a morte. A corretora foi declinando até falir. Fui acolhido pelos meus pais que se comportaram com muita sabedoria, pois tinham certeza de que eu reagiria e a dor se dissiparia. Depois de um ano de confinamento total, um grande amigo meu sugeriu abrir um escritório de representação. Ele se comprometeu a me apresentar às indústrias, pois tinha muito trânsito neste meio e conhecia minha capacidade para tocar o negócio.
— Bom que você reagiu, meu amigo.
— Obrigado. Aceitei ajuda dele e estruturei o escritório, mas pouco tempo depois, senti a necessidade de sair da cidade, pois aquele lugar sempre me trazia recordações e me causavam muito sofrimento. Decidi então ir para bem longe e não sei qual o motivo de ter escolhido Santarém para me estabelecer. Aqui estou e não quero mais me casar e muito menos formar família. Vou viver assim até morrer.
Depois desse encontro que tive com Raimundo, naquele bar à beira do rio, nos tornamos amigos. Por volta das três horas da madrugada, pagamos a conta e cada um seguiu seu rumo. Nunca mais tivemos oportunidade de nos encontrar, mas trocávamos mensagens pelo celular frequentemente. Ele sempre me mandava notícias dizendo por onde estava viajando: “este mês estou fazendo a praça de algumas cidades do interior do Amazonas. Já estive em Coari; Parintins; Presidente Figueiredo. Hoje estou em Manicoré. Depois de amanhã vou para Tefé”.
Um dia eu estava almoçando num restaurante em Belém, e havia no local uma televisão ligada passando o noticiário. De repente uma notícia me chamou a atenção: Um barco lotado de passageiros estava atracando no porto de Óbidos, lugar onde o rio Amazonas é mais estreito, profundo e a correnteza é muito forte, sofreu um naufrágio, houve muitos mortos, inclusive muitos corpos desaparecidos. Saí do restaurante com uma sensação de que algo de ruim havia acontecido. No dia seguinte, comprei o jornal de maior circulação no estado e li a reportagem sobre o acidente com o barco, onde constava a lista dos passageiros que haviam desaparecido no desastre do dia anterior. O nome do meu amigo estava na lista.






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