Mudei-me para esta casa há muito tempo.
Tempo suficiente para não precisar quando exatamente larguei minhas
malas na cama ou mandei construir a mesa de centro sob medida que decora a
sala. Ao mesmo tempo que, de olhos vendados, posso dançar sem esbarrar em
nenhum móvel, assumo que nunca me detive em nenhum quadro ou rodapé,
nenhum azulejo ou basculante desse lugar. Também olho pouco pela varanda e
as cortinas do meu quarto passam os dias cerradas, de modo que desconheço
a paisagem que circunda esse meu pedaço de mundo. Descobri, portanto, que
desconheço meu próprio teto. Mas percebo que nem tudo é desatenção. Dentre
vários objetos que fui acumulando ao longo dos anos e que agora adornam e
entulham os cômodos, gosto especialmente de uma saboneteira de porcelana
que ganhei de uma tia-avó. Em seu passado, a saboneteira ficava em lugar de
destaque na pia... Minha tia-avó, dona Lídia, tinha um banheiro espetacular.
Minha prima ia cantar lá dentro por causa da acústica. Eu reservava meu
momento de leitura para ficar meia hora sentado no vaso, aproveitando o silêncio
que aquelas paredes encerravam. Havia uma lâmpada amarela no centro do teto
e quatro luminárias antigas em cada parede. Um espelho de bordas douradas,
de corpo todo, ficava atrás da porta. Um outro espelho, mediano, em cima da
pia. O box de vidro, no qual ela estampou algumas figuras marinhas, era um luxo
à parte porque parecia coisa de rico. Dona Lídia havia herdado a casa e cuidava
de tudo com muito afeição, bordando crochês para colocar sobre o armarinho
das toalhas e lustrando semanalmente a famigerada saboneteira que luzia como
uma joia. O mais curioso daquele banheiro era a janela ampla, quase uma
varanda aberta, um palanque devido à altura. Sorte nossa que o janelão dava
para os fundos, onde uma mata fechada nos fazia enxergar ao longe alguns
saguis pulando de galho em galho. Dali também víamos o pôr do sol estendendo
as réstias de luz no ladrilho do piso. Era um lugar realmente especial. Desse
cenário, me foi legada a saboneteira que, agora percebo, me conecta
imediatamente a essas memórias de infância. Talvez falte a minha casa lugares
especiais, os quais sejam capazes de me incitar o inesquecível, uma lembrança,
um pouco de vida. Amanhã lustrarei a saboneteira e, quem sabe, torno essa
residência um lar?
Quem sabe.
Maurício Rosa integra o nosso Grupo LGBTQIA+ do projeto É DIA DE ESCREVER.
Você pode conversar e conhecê-lo um pouco melhor em seu instagram @maurício.rosa.contato
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