Gaza e a Hidra Contemporânea: Reflexões Sobre um Genocídio em Andamento
- Diogo Dias
- 19 de mai.
- 4 min de leitura
Por Diogo Dias
O portal de notícias Brasil de Fato noticiou no dia 19 de março que mais de 18 mil crianças palestinas foram assassinadas pelo Estado de Israel até aquele momento segundo o ministério da saúde da Palestina [1]. Os ataques à Faixa de Gaza iniciados em 7 de outubro de 2023 são um verdadeiro massacre e alguns analistas consideram as ações militares parte de um genocídio, justamente por mirar no futuro palestino. Afinal, o que pode um povo sem as suas crianças?

Porém, na superfície do debate público dominado pela imprensa limpinha, de jornalistas que se colocam como reservas morais da neutralidade, o genocídio promovido por Netanyahu é tratado como uma mera extensão dos conflitos históricos entre palestinos e judeus em torno do território reivindicado pelos dois povos. A palavra genocídio, quando pronunciada (o que é raro) é dita com timidez desconcertante. É claro, que o atual massacre está ligado a essa longa história, mas há uma novidade que não pode passar despercebida. Netanyahu faz parte da atual ascensão global do extremismo de direita. Fato que constrange qualquer conhecedor da história do holocausto judeu.
É impossível não se fazer a pergunta: como pode surgir de um povo marcado por tamanha violência indivíduos que assumem o papel de genocidas?
Não sejamos levianos e deixemos essa pergunta momentaneamente sem resposta. Qualquer explicação unívoca será insuficiente. Porém, não podemos deixar de colocar alguns pontos para a reflexão.
O primeiro deles é que sempre devemos considerar o atual estado da geopolítica quando pensamos o caso de Israel. Pois, é de apoio externo que se sustenta a ofensiva militar brutal contra a Palestina. Ainda com Joe Biden (e com promessa de continuidade de Kamala Harris) os EUA apoiaram o estado de Israel financeira, militar e politicamente. O cessar-fogo negociado em janeiro de 2025 foi logo descumprido por Netanyahu e a medida foi prontamente apoiada pelo atual presidente estadunidense Donald Trump. Se a política bélica dos EUA não faz distinções ideológicas quando estão em jogo os seus interesses, pouco importa o presidente. É essa segurança que faz o primeiro-ministro de Israel falar grosso e sustentar o massacre. Já que se dependesse da sua sustentação política interna, os ataques já teriam cessado e ele já estaria afastado do poder.
Um segundo ponto é o papel simbólico do massacre promovido em Gaza para a Internacional Neofacista, se me permitem a paródia terrível. Conforme a tese de Vladimir Safatle em algumas de suas intervenções recentes, a extrema direita possui um diagnóstico do tempo mais realista que nós, seus adversários. Pelo simples fato de que eles não têm pudor algum de dizer que, sim, o mundo como conhecemos está com os dias contados, pois a promessa humanista de igualdade não pode se cumprir. Simplesmente porque eles não querem superar aquilo que dá as condições de possibilidade da sua existência: o capitalismo em crise. A extrema direita se alimenta do caos e tem apostado no aprofundamento da exploração, da violência e do extermínio. De fato, sob o capitalismo não há como salvar a todos, diz Safatle. E o que fazem os neofacistas? Assumem essa verdade como justificativa para a guerra. Por isso, Gaza é o símbolo da nova era da dominação imperialista. Não à toa, Trump reduz toda a questão em uma imagem brutalmente capitalista ao sugerir que o território palestino seja tomado e transformado em um de seus resorts.
Além disso, também chama a atenção o efeito devastador do orientalismo que foi transmitido a nós pelo domínio da visão ocidental, e nesse caso em particular do discurso ideológico do neoliberalismo. Toda a indústria cultural se dedicou durante todo o século XX em construir uma ideia divisionista do mundo a partir da subjetividade forjada pelo “sonho americano” da vida totalmente mediada pelas mercadorias, pelo acesso ao consumo, pela adoção irrefletida de qualquer novidade tecnológica. Enquanto nos deslumbrávamos com Nova Iorque, São Francisco, Flórida e afins, o resto do mundo era representado sempre como atrasado em relação ao grande progresso do centro do capitalismo. Culturas milenares e riquíssimas foram reduzidas a estereótipos de pobreza, terrorismo, fundamentalismo religioso e autoritarismos. Ironicamente, são características com que hoje os EUA têm que lidar. A decadência da imagem de liderança global e o surgimento de potências capazes de fazer frente ao poder comercial e bélico aumentam a intensidade da resposta estadunidense a essa crise. Estão botando em prática seu plano número um de sempre. Para todo problema interno, uma guerra em outro território como remédio.
Longe de querer esgotar a questão, trago esses pontos para refletir sobre o porquê um massacre tão brutal, de números tão impressionantes e de intenções genocidas é tratado tão superficialmente pelo mainstream da imprensa brasileira. Aquela que se pretende intelectualizada, “bem informada” e neutra, mas que já não consegue esconder as suas tendências politicas alinhadas, em última instância, à manutenção do sistema de exploração que alimenta o genocídio palestino. Entre os comentários de linguagem cuidadosa, o estilo despojado e o ar de superioridade moral, o jornalismo hegemônico produz um discurso que poupa os verdadeiros responsáveis pelo derramamento de sangue palestino, enquanto lamenta a “insensatez” de um líder político que supostamente saiu do controle. O que acontece, porém, é o que um certo crítico literário muito arguto identificou nas personagens de Machado de Assis. Podemos resumir o caso do “jornalismo limpinho” como mais um capítulo da nossa brasileira e malfadada desfaçatez de classe – agora televisionada.
Quanto a nós, temos a oferecer nossa solidariedade às crianças e adultos palestinos que resistem e reafirmam sua existência como povo mesmo diante dessa grande barbárie. Uma lição que também podemos encontrar em territórios muito próximos, nas periferias das cidades e no campo brasileiro. Afinal, tanto aqui quanto lá trata-se da mesma crise que se escancara em faces monstruosas. Puxem suas espadas contra a Hidra do capitalismo em crise.
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