Um posto de saúde é comunitário. Ou seja, é para todos do bairro, sem distinção. Não importa se quem vai ao postinho tem mais dinheiro, tem plano de saúde, não tem comida em casa ou qualquer outra particularidade: não tem nenhuma importância, ou é para não ter. Ninguém vai ao postinho para se divertir. E quem vai tem que ser atendido, sem diferenciação. Se pode esperar na fila para ser atendido ou encaixado numa agenda, tem que ser atendido.
Pegar remédio no postinho é um direito, independe de quem ou do que se é. Usar desse direito é um direito de quem paga impostos, é brasileiro (ou até turista), aposentado ou na ativa, jovem ou idoso — sem usar esse direito para passar na frente de alguém, principalmente num postinho, onde muitos são idosos. Como ela.
Era uma quarta normal da semana. Tinha um pouco de tempo sobrando, pela manhã, e decidiu pegar os remédios — para aproveitar a validade da receita. Havia muita gente nas cadeiras, aguardando, e apenas um atendente na farmácia.
Sentou, decidiu aguardar a vez e exercer o direito de obter a medicação. Participou da conversa com os vizinhos da espera. Ouviu um dizer que tinha câncer, outro acabara de ser operado. Estavam à sua frente, na fila — ainda bem, pensou, aliviada com os remédios que ia pegar. Se não, daria a sua vez, com prazer.
O hábito de furar fila não necessariamente significa passar na frente sem pedir. Em alguns lugares do mundo o brasileiro é até conhecido por esse hábito. Num descuido, alguém está na sua frente, numa fila do supermercado, na única vaga do estacionamento, na fila do pão, na academia, aguardando o ônibus ...
Ficou na espera sem saber se tinha sua medicação na farmácia do postinho. Perguntar ocuparia a única atendente, que teria que consultar o computador — e essa seria uma forma de furar a fila, pensava, e sua educação não permitia. Essa educação a tinha colocado em situações constrangedoras, antes, quando quis ceder a vez para mulheres que achava estarem grávidas — e, não estando, se sentiram ofendidas. Afinal, nenhuma mulher que ser vista como gorda. Nem na espera de uma fila imensa.
Uma longa espera de quase hora e meia, restando duas pessoas na fila, à frente, levantou para aguardar a vez esticando as pernas. Justo nesse momento chega uma mulher daquelas do tio “cheguei”: reclamando do jacaré — para pegar a senha— que estava distante, e da imensa fila sentada, à espera, na sua frente.
De imediato, a tal mulher anunciou que iria entrar para perguntar se havia a medicação dela. O sangue subiu, e, delicadamente disse à mulher que perguntar seria furar a fila, pois havia apenas uma atendente. A moça insistiu. Com paciência, testada pela longa espera — brigando com os neurônios que se debatiam para sair da educação — , com uma voz calma — retirada do último fio da paciência desgastada — , apenas informou à impaciente que ela não iria passar à sua frente para fazer a pergunta.
Com um tom de voz calmo, mas um pouco mais elevado, ressaltou que, se algum dos presentes, que aguardavam a vez há mais de horas, permitisse, que cedesse a vez. Mas ela, não iria permitir. Seria um desrespeito para os demais, afirmou.
A apressada rispidamente, e do nada, soltou um “ah não, você, sua chique, pensa que é o que? Eu não vou esperar sem saber se tem a minha medicação, estou em horário de trabalho! “, vomitou, olhando-a da cabeça aos pés.
Corada de raiva e na briga interna, entre o pensamento rápido de ir aos tapas com a insolente — ela sim, preconceituosa e mal-educada—, ante o silêncio surpreso da plateia, e o risco de ser gravada por celulares ávidos por discussões inesperadas — e sair no jornal do meio-dia—, arrancou o resto do resto da educação, e disse “senhora, na minha frente a senhora não vai entrar”. E deu as costas, disposta a abrir os braços, se necessário, se a outra resolvesse lhe atropelar.
O coração saindo pela boca, a cabeça doendo pelo intenso fluxo de adrenalina, e a espera do tapa que não veio (nem podia sair) foram salvos pelo número de sua senha gritado pela atendente, que, impávida, a tudo assistira, esboçando um tímido sorriso no canto da boca.
Desmaiou as trêmulas pernas na cadeira, o suficiente para se acalmar e entregar o documento e a receita, louca para sair e respirar o ar de um dia que prometera ser tranquilo. A preconceituosa não esperou — e não a esperou na porta, felizmente, para se vingar da pretensa humilhação abafada pela surpresa de uma chique mulher que corajosamente a afrontou, superando a própria vontade de devolver uma fala preconceituosa.
Saiu do postinho pensando no porquê havia sido taxada de chique, se estava vestida com uma simples camiseta, jeans rasgado e tênis surrado. Depois do episódio, passou a comprar os remédios na farmácia comum, aceitando o fato de ser chique por ter um plano de saúde que ressarce parte dos remédios. Coisas de quem trabalhou a vida inteira para usufruir dos poucos direitos que aposentados do Brasil nem sempre possuem. E são obrigados a ouvir impropérios numa simples sala de espera de um postinho de saúde do bairro. Esfolados pelos pares que, em vez de se unir, reivindicam direitos que nunca existiram — furar a fila.
Goretti Giaquinto
Desafio # 133 de 365
Tema: Clima ou Climão
1- Escreva um conto de "romance" ou "confusão";2- O conto deve se passar em 1 destes ligares: Academia - ônibus - Trabalho;3 - Caracteres livres, mas lembrem-se: Romance é sobre "pintar um clima", e confusão é sobre "caos, desentendimentos, climão na frente de todo mundo".
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