Caros leitores e leitoras.
Hoje, sendo sexta-feira, gostaria de falar de assuntos mais leves, que criem um bom clima para o nosso fim de semana, porém, assim não farei.
Não farei pois hoje pela manhã, estava eu na academia tentando manter um mínimo de decência física em meio ao caos de saúde corporal e mental que sou eu, quando assuntei um casal (entre uma série de repetições e um gole de água) reclamando com o tom típico dos que se acham donos do mundo.
"Esses mendigos estão “enfeiando” a frente da academia. É um absurdo! São sujos e assustam as mulheres", disse a madame, ajustando seu colant verde vômito. O marido, que só gemia a cada repetição do exercício e concordava com um grunhido para ela, apenas acenava com a cabeça e alternava exercícios e admirar-se no espelho da academia.
Eu, perplexo, só conseguia pensar em como aquelas almas ali fora, debaixo do coberto da academia, deviam estar agradecendo ao destino por ao menos terem um canto seco. Mas, no entendimento da madame, ali não era lugar para eles. Claro, empatia é pedir demais para os nossos cidadãos de bem, afinal, o que importa se mais de 600 moradores de rua morrem de frio todo ano em São Paulo?*. O que importa é manter a estética da rua, não é mesmo?
A cena se desenrolou para algo ainda mais grotesco quando, ao término do treino, e depois de escutar a sua mulher falando sobre os moradores de rua durante todo ele, o "cavalheiro" do casal decidiu sair na chuva para dar uma lição nos tais "invasores". Lá fora, sob o coberto, dois moradores de rua tremiam de frio, tentando se encolher ao máximo. E aí, numa exibição de pura virilidade, o valentão chutou as sacolas com os pertences deles e a perna d'um deles e gritou: "Aqui não é lugar pra vocês!".
Os responsáveis pela academia viram, se levantaram e foram apressadamente para o lado de fora. Chegando lá, praticamente puxaram uma cadeira, tiraram um saquinho de pipoca, e assistiram tudo do melhor lugar. Como bons representantes do civismo paulistano, nem pestanejaram, assistiam e validavam as ações do maromba e sua mulher. Que se dane se o Ricardo Nunes e o Tarcísio estão mandando a polícia para destruir barracas e confiscar os poucos pertences desses miseráveis. O importante é que o local esteja limpinho e arrumadinho para os frequentadores e estes moradores de rua que arranjem outro lugar para ficarem.
Aliás, só um parênteses, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou ontem (dia 27/06/2024), em primeira votação, um projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na capital. Pessoas físicas ou jurídicas. Projeto prevê a necessidade de precisamos pedir duas autorizações, além de cumprir outros requisitos para poder doar.
Voltando ao casal de maromba, saí da academia fervendo de raiva e pensei em intervir e discutir com o casal e donos da academia. Mas sábio que sou, percebi a desvantagem e esperei a selvageria acabar. Fui até os moradores de rua e os ajudei como pude, mas a sensação de impotência era esmagadora. Porque não adianta nada eu, você ou qualquer outro tentar fazer a diferença se as políticas públicas são feitas para esmagar os mais vulneráveis.
Durante a pandemia, o número de pessoas em situação de rua aumentou drasticamente. Dados de 2021 mostram que mais de 66 mil pessoas foram para as ruas em São Paulo devido à perda de emprego e moradia. Quantas conseguiram se reerguer? Não existe uma política eficaz de reabilitação e reintegração para essas pessoas. Melhor investir em bancos públicos onde ninguém pode deitar ou instalar pedras debaixo dos viadutos para ninguém poder dormir por ali, não é?
Enquanto isso, seguimos nessa bolha de indiferença e crueldade, mascarada por uma falsa sensação de segurança e moralidade. Voltando para casa, só conseguia pensar em como a humanidade pode ser tão desumana, tão cegamente egoísta e cruel.
É, meu caro e minha cara, estamos cada vez mais longe de qualquer traço de compaixão ou solidariedade. E quem paga o preço são sempre os mesmos: os que já não têm mais como pagar.
Indignado,
Bob Wilson