Banheiro
Banhava-se sem pressa, gostava da sensação da espuma na pele, o deslizar glicerinado dos dedos pelo corpo, já relaxado pelo calor do vapor. Cheiro de menta. Ele adora o frescor do shampoo mentolado nos cabelos. Refresca o calor das ideias. O piso, em tom terroso, pouco contrastava com aquelas paredes beges. Paredes de alvenaria antiga, revestidas por azulejos que intercalavam desenhos e pensamentos. Quando alegre, focava nas impressões floridas dos azulejos desenhados. Melancólico, dispersava a retina na cor opaca, álgida, à deriva dos pensamentos. Manias, ele era cheio delas. Havia vezes em gostava de ouvir a voz de Gal enquanto a água morna escorria em seus ombros. Noutras, preferia embalos de Adoniran e arriscava passinhos com pés molhados. Quando preocupado, não queria voz alguma, bastavam as que atormentavam sua mente enferma.
Pelas manhãs, era rotineiro. Implacavelmente rotineiro. Jogava água fria no rosto, bochechava três vezes e cuspia a gosma com a torneira ainda aberta. Assim garantia que a gosma não ficasse dispersa, ao alcance do seu olhar. Só depois, guardava a placa de silicone na embalagem alaranjada. Uma embalagem bonita, cor de tangerina. Reserva marcas do ranger de seus dentes, de sua inquietação noturna. A placa rangida pelo bruxismo. BRU-XIS-MO. Sintoma da fonética potente. Potente como a força de seus dentes, hoje corroídos por sua ansiedade. A embalagem, no entanto, é alegre. Alegre como gomos de uma mexerica, chupados sob a sombra de uma árvore.
Vista
A casa tem uma frente vistosa, de rampa íngreme para a garagem toda de cacos cimentados ao chão. Uma rampa de mosaicos. Passado o corrimão, três degraus dão acesso à porta de vidro fumê. Na época se usava. Fumê espelhado. Igual ao vitrô, coordenado com o acabamento de vidros coloridos. O chão é de taco estrela, de instalação laborosa, pecinha por pecinha que coordenadas, dão vista para lindas estrelas. É muito boa a sensação de deitar-se sob as estrelas, como num sentido inverso ao céu. Estrelas que sustentam o corpo quando resolvo deixar meu corpo se alongar, ou em algum asana qualquer. Chegou um tempo que as estrelas ficaram ásperas, sem brilho. O cachorro corria muito ali. Cinco cachorros passaram por ali. Cinco criaturas que só trouxeram alegrias para o chão de estrelas. Cada qual com seu temperamento. As estrelas também já acomodaram sofás. Três, no total. Mas o atual é, sem dúvidas, o melhor. É espaçoso, reclinável, acomoda uma família inteira, apesar da família da casa ser pequena. Adoramos o sofá. A parede já foi lisa. Hoje é rugosa. Texturizada com palha da costa, coladas uma a uma por uma mente em processo terapêutico. Já foi branca, mostarda e, hoje, tem um tom caramelado. O caramelo harmoniza muito bem com a Jibóia. Harmoniza, também, com os vidros marrons fumês espelhados da porta e do vitrô. São vidros ambivalentes. Se a luz está acesa, quem está de fora da casa enxerga quem está dentro. Se apagadas, ocorre o inverso. O vitrô dá vista para uma árvore na rampa de cacos. Já foi um coqueiro, mas o pobre coitado não resistiu aos ácaros da gema. Resistiu um bocado, até secar e dar lugar para uma bonita Resedá branca. A região alta da casa permite que do vitrô, se observe boa parte da cidade, embora a melhor vista seja o horizonte para antigo seminário maior. Um suntuoso prédio colonial que hoje abriga uma faculdade. Uma visão privilegiada. Há alguns meses, as estrelas foram reavidadas com sinteco. Estão lisas e brilhantes. Reservam lembranças de pessoas que já passaram por ali e faz morada para outras que chegaram. O mais recente é o afetuoso galgo branco que corre em disparada e saltita pelo sofá espaçoso. O galgo adora avistar a vizinhança pelo vitrô, tal qual a dona da casa.
Thiago Loureiro é doutor em educação, e participa do projeto É DIA DE ESCREVER como um dos integrantes do Grupo LGBTQIA+.
Quer conhecê-lo um pouco mais? Segue lá, @loureiro_thi.
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