Os amigos inventam festas para nossos filhos. Quando o meu era adolescente, eu me convidava pra levar e buscar. Estratégia pra olhar de longe. Tipo, orai e vigiai. Os outros pais? Não sei o que pensavam. Eu, sempre preferi saber onde o meus filhos estavam e com quem. Até crescerem.
Amanheci com um pressentimento desses que mães conhecem. Intuição de mãe. Não adiantou pedir ao meu filho pra não ir à tal festa aonde “todo mundo vai”. Não há argumentos para maiores de idade, mesmo morando na casa dos pais. A tal liberdade de escolhas. Faz parte do educar para o mundo, desapegar. Confiar no que se ensinou até então.
O dia passou se arrastando. A noite, ameaçando. A hora da bendita festa. Saída com mil recomendações. Foto com santinhos e cristais energéticos em volta, para garantir proteção. Além da superproteção materna diária, que se une a todos os santos, no mesmo tom de chantagem usada pelos filhos em reciprocidade.
Difícil dormir quando a luz do corredor fica acesa — sinal que nem todos estão em casa. O sono entrecortado se expande em pesadelos. As horas, não viram os ponteiros digitais no celular. Acordar. Olhar a brecha inferior da porta, torcer pra que logo apague. Virar para o lado contrário para a luz não ultrapassar os olhos fechados. O movimento das molas da cama antiga se transforma em personagens de cada sonho estrangulado. O tique-taque silencioso do relógio digital salta da tela do celular que aguarda notícias. Que se tornam apelos nem sempre bem recebidos. Nem respondidos.
As sombras no quarto formam visões apavorantes, que se unem a pensamentos que se racham em madrugadas insones. A noite camufla preocupações do dia, que se despem no escuro necessário para o descanso. À noite, monstros nunca explicados se espreitam. Mesmo adulta, a noite, pra mim, traz o cenário do inexplicável que se roteiriza em sonhos, fragmentos do inconsciente. Exagerados nos medos adultos que se acumulam entre as paredes. Que se projetam nas sombras que se movimentam dispostas a personificar o que, semiacordada, a imaginação se deixa levar. Sombras que dançam entre as persianas, e que teimam em não trazer o escuro necessário ao adormecer. Cúmplices dos remédios que a agitação interna incorporou.
O toque do telefone convencional estraçalha qualquer tentativa de ficar calma. Silêncio assassinado na ligação às 3 horas da manhã. O som antecipa uma tentativa de fraude de sequestro ou aviso de acidente. É o que passa de imediato na cabeça de mães despertas. Os sons noturnos, misturados e abafados na última tentativa do sono difícil, amplificam o grito do telefone, concorrendo com o barulho do coração materno.
O telefone, peça remanescente à modernidade dos celulares de toques gentis, não se intimida com o silêncio do quarto. Pousado na mesa de cabeceira, distante do alcançar do braço, na tentativa de menos assustar, apavora. Não adianta, a distância.
Do outro lado, uma voz conhecida pedindo ajuda, como uma criança que fez alguma traquinagem.
— Mãe, estou bêbado, vem me buscar.
— Onde você está, filho?
— Perto daí. Vem me buscar. Tô bêbado.
— Onde? Onde?
— Perto. Tô bebadaço. Não consigo chegar em casa.
O coração desenfreado se mistura à urgência da situação. As sombras externas se minimizam na luz do abajur, acendida pra pegar a bolsa e sair no auxílio da criança maior de idade que está exposta ao perigo que as ruas desertas trazem. Outras sombras, mais desconhecidas, se juntam aos segundos intermináveis entre a bolsa e a porta de casa, o ligar o carro e o sair sem direção. Não havia tempo para acender lâmpadas, o medo atropelando as pernas que insistiam em tremer, no encontro do susto com os pesadelos interrompidos.
Minutos de reza pra esconder o medo. Minutos a dirigir sem rumo, com a luneta do olhar direcionada na busca sem orientação. Minutos onde o deserto das ruas iluminadas por postes com suas lâmpadas, no alto, formam sombras em muros onde a luz não consegue chegar. Sombras assustadoras, nas madrugadas normais, junto com o silêncio da ausência de qualquer coisa em movimento. Sombras não reparadas, na busca dessa noite, que os olhos anseiam por outra visão mais conhecida e tão necessária.
O olhar e o coração maternos, amparados num carro cujo GPS é a mera intuição, se deslocam, brigando com os pensamentos inúteis. Momento de desesperada procura de um sinal do carro. De vida. Pensamentos idiotas, só atrapalham. Pensamentos despertados pelo som do telefone, antecipados por um pedido não atendido.
A alguns quarteirões da casa, um movimento chama a atenção. Na esquina, um homem numa moto, parado, falando ao celular. Única figura em movimento, a que conduz o olhar aflito ao carro parado no meio da rua, com a porta aberta e o corpo conhecido, no chão. Uma imagem petrificada por segundos — os necessários para o momento, e que precederam os movimentos em câmera lenta com que se lembraria, depois do ocorrido.
Para o carro. Salta sem pensar em nada, buscando não deixar os monstros voltarem. Corre até o corpo, e só consegue chamar seu nome, entre os milésimos de segundos que confiam no movimento que quer ver. Não pensa no homem da esquina, no deserto da rua, na própria figura vestida com a roupa velha aproveitada como pijama diário.
A resposta vem, junto com o alivio. Anjos se conversaram. O filho, bêbado, decidira cochilar no asfalto-cama. Não haveria tempo para sermões e desabafos. O homem da moto, vendo a cena, se aproxima para perguntar.
— Conhece o rapaz, senhora? Eu estava ligando pra polícia.
— Sim, é meu filho, vim buscá-lo porque estava passando mal.
O homem ajuda a colocá-lo no carro, e se despede, se desculpando. Iria trabalhar. Agradecida por minutos, e a realidade apareceu. Dois carros, uma mulher e um filho bêbado, desfalecido. Os minutos voltaram a ficar invisíveis, mas a ajuda chega num táxi — provavelmente acionado pelo homem da moto. O motorista para e pergunta se precisa de ajuda. Peço pra ele dirigir o outro carro até a casa, que realmente estava próxima. E, depois, seria devolvido pra pegar seu táxi. Não cobra nada pela solidariedade da madrugada.
O taxista-anjo tentou consolar com a frase conhecida, os jovens aprontam. Concordei, pensando que a mãe dele deve ter passado por coisa parecida. Ou era a única coisa para dizer, no amanhecer de uma cidade, diante de uma mãe desconhecida.
Sigo com o moleque beberrão pra a glicose restauradora. O sermão fica pro dia seguinte, iniciado com o que as mães de plantão costumam ameaçar. Ineficiente, na maior parte das vezes.
— Eu não pedi pra você não sair? Meu coração estava apertado!
Sermões repetidos muitas vezes, depois. E que serão repetidos outras vezes, intuídos na intimidade de um quarto repleto de sombras invasoras, de noite ou de dia. Precedidos do pensamento vigilante das mães que aprendem a confiar na conexão superior que protegerá suas crias.
Goretti Giaquinto
Desafio #51 de 365
Tema: O que se sente mas não se enxerga
Descrever atmosfera de um lugar. Conto dramático.
"Esse texto é uma ficção factível de ser realidade para mães vigilantes até ... sabe Deus quando"
Nossa senti a ansiedade dessa mãe daqui. Que conto maravilhoso, parabéns!
Eu nunca tive esse problema com as meninas. Apenas uma vez, com meu filho, quando ele chegou em casa carregado pelos amigos. Situação estranha, porque ele sempre foi o mais tranquilo e ajuizado dos três.
Já passei por isto…. Tão bebada que queria sentar na calçada e ficar por lá… não tão adolescente assim, mas tudo acabou bem😉